São Paulo, quinta-feira, 17 de fevereiro de 1994
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Anistia não, queremos respeito

FRANCISCO GRAZIANO

Engana-se redondamente quem imagina que os agricultores levam vantagem com essa anistia da correção monetária dos financiamentos rurais. Pelo contrário. São os produtores rurais os maiores prejudicados com essa pretensão absurda dos deputados federais.
Equivoca-se quem supor que os agricultores foram favoráveis à anistia concedida. A CPI do Endividamento Agrícola buscava soluções para contornar a inadimplência, principalmente dos pequenos agricultores, agravada pela defasagem monetária oriunda do Plano Collor. Nunca os agricultores defenderam o calote no crédito rural.
Erra, mais uma vez, quem acredita que os agricultores sentem-se representados pela bancada ruralista presente no Congresso. Salvo honrosas exceções, no máximo esses parlamentares exprimem as posições de uma ultrapassada oligarquia rural, cujos líderes teimam andar na contramão da história. Estes resquícios latifundiários não podem ser confundidos com os agricultores verdadeiros, que produzem e não especulam, que plantam e criam as riquezas da nação.
Agricultores modernos sabem que o mundo evoluiu. O Brasil não é mais essencialmente agrícola. Essa mudança alterou comportamentos sociais. Desde que a indústria dominou a economia e consagrou o modo de vida urbano, a partir dos anos 60, brasileiros que vivem e produzem no campo foram perdendo espaço na dinâmica da sociedade. Nada mais natural. O êxodo fez com que a população urbana, inferior até os anos 50, atingisse hoje quase 80% do total.
Essa valoração do modo de ser urbano ocorreu de forma deturpada, quase maniqueísta. A revolução tecnológica recente consagrou a supremacia da ideologia urbana e os homens do campo viraram "caipiras", em contraposição aos "modernos" citadinos. Nesse processo, agricultores e a atividade econômica rural foram aviltados.
É interessante observar que durante a fase áurea da industrialização brasileira, a agricultura também sofreu um intenso processo de modernização tecnológica, ampliando as fronteiras agrícolas, expandindo a produção e a produtividade. Em outras palavras, a agricultura não ficou para trás no processo de desenvolvimento da economia brasileira. Senão, não teria havido a urbanização.
Esse desempenho não conseguiu, entretanto, eliminar a discriminação contra os que produzem no campo. Primeiramente, há que se reconhecer que as condições do trabalho rural, em si, são desfavoráveis quando comparadas a outros ambientes. Na roça o trabalho é árduo, a terra suja a roupa, o sol castiga o corpo. As incertezas da produção são maiores devido aos fenômenos ecológicos. A tecnologia, mesmo avançada, não domina totalmente as leis da natureza.
Essas características intrínsecas à atividade rural, associadas ao processo histórico do desenvolvimento, provocaram um viés ideológico muito forte. Todas as mazelas do campo ficam aumentadas pelas lentes da ideologia urbana. A versão fica maior que o fato. Os latifúndios, por exemplo, hoje residuais na dinâmica da agroindústria rural, continuam sendo tratados como se dominantes fossem. Denúncias de trabalho ilegal ou de perdas de produção, evidentemente recrimináveis, viram manchetes nacionais. As queimadas passam a simbolizar o inferno.
Tudo isso é compreensível, embora esteja faltando o devido esclarecimento das novas lideranças do setor, procurando mostrar a realidade rural. Afinal, nenhum trabalhador do campo prefere ser "caipira", nem os empresários rurais gostam da pecha de "caboclo". Queremos ser cidadãos, com os mesmos direitos e deveres.
Mas a deficiência básica do marketing rural reside no comportamento atrasado da remanescente oligarquia rural e na ação deletéria dos especuladores de terras. Enquanto esses segmentos latifundiários e conservadores continuarem fortes na política nacional e na mídia, os agricultores profissionais continuarão sujeitos ao desmerecimento público.
A anistia do crédito rural defendida pelos congressistas, vista por esse ângulo, representa a maior tragédia que se abateu sobre a agricultura brasileira, pois empurrou a opinião pública contra os produtores rurais. E ao indispor a sociedade contra os mesmos, prenuncia cenários difíceis para a atividade rural. Pior para a nação.
Talvez aqueles que desviaram o crédito rural para comprar terras estejam precisando dessa anistia. Agricultores sérios dispensam essa mamata. Não queremos esmolas. Queremos respeito. Precisamos de melhores condições para produzir, mais investimento em tecnologia e comercialização com maior segurança. Fora disso é malandragem.

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