São Paulo, quinta-feira, 17 de fevereiro de 1994
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Kent Nagano fala da atualidade da ópera

ANA FRANCISCA PONZIO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Kent Nagano, 42, pertence à nova geração de maestros com reputação em alta no circuito internacional. Nascido na Califórnia (EUA), neto de japoneses, Nagano começou sua carreira musical tocando clarineta e piano.
Antes de se mudar para a Europa, onde é considerado símbolo do regente moderno, ele trabalhou como assistente de Seiji Ozawa e dirigiu três orquestras americanas –a da Ópera de Câmara de San Francisco, do Oakland Ballet e a Sinfônica de Berkeley. Desde 1989, Nagano dirige a Orquestra da Ópera de Lyon, na França.
Nagano deve se apresentar no Brasil em 1995 –junto com a Orquestra e o Ballet de Lyon. Em entrevista à Folha, por telefone, ele falou pela primeira vez à imprensa brasileira. Afirmou sua paixão pela música contemporânea, que inclui de Messiaen a pós-modernos como John Adams e mesmo astros do rock, como Frank Zappa e Sting.
Como convidado, Nagano vem atuando à frente da London Symphony Orchestra, da Filarmônica de Berlim e da Orquestra do Mozarteum de Salzbourg. Também diretor da mais tradicional orquestra britânica, a Hallé de Manchester ("onde tento tornar a tradição viável e relevante para os nossos dias"), Nagano diz que tem parentes em São Paulo, que ele não conhece. "Enquanto minha avó preferiu ir para os Estados Unidos, uma de suas irmãs emigrou para o Brasil", comenta.
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Folha - Você é americano, descende de japoneses, trabalhou nos EUA e vem desenvolvendo uma bem-sucedida carreira na Europa. Como a mistura de culturas influi na sua percepção?
Kent Nagano – Pertenço à terceira geração de uma família de japoneses que imigrou para os Estados Unidos muito tempo atrás e, por isso, não tenho um vínculo muito forte com o Japão. Falo um pouco de japonês, mas não muito bem. Toda a minha formação, inclusive a musical, é de origem européia. No entanto, tenho grande respeito por meus ancestrais. Quando vou ao Japão é sempre algo muito especial, sinto que lá estão minhas raízes. Mas, em termos de vida cotidiana e profissional, o Japão é uma referência distante. Da música às atividades de lazer, é o Ocidente que me orienta.
Folha – A vida na Europa mudou suas referências musicais?
Nagano – Tive professores maravilhosos nos Estados Unidos. Mas só adquiri uma compreensão real das músicas francesa, alemã, vienense ou inglesa depois que vivi nos países onde cada uma se originou, depois que aprendi os idiomas locais e os detalhes de cada cultura.
Folha – Qual a importância de seu encontro com Messiaen?
Nagano – Messiaen foi a primeira pessoa que me convidou para ir à Europa, onde eu nunca tinha estado antes. Vivi na França, na casa dele, onde não se falava uma palavra em inglês. Repentinamente, fui forçado a me integrar ao estilo de vida francês e isso me influenciou muito. Messiaen também me abriu as portas para a música deste século. Antes de trabalhar com ele eu nunca tinha interpretado música contemporânea.
Folha – E Seiji Ozawa? Qual o papel dele em sua carreira?
Nagano – O contato com Ozawa foi muito importante. Ele é um grande músico e maestro mas pouca gente sabe que Ozawa também é uma pessoa muito generosa. Quando comecei a trabalhar como seu assistente, ele percebeu que eu precisava superar certas fragilidades técnicas. Além de me ensinar a vencer tais problemas, ele me encorajou muito, me apresentou para pessoas com as quais achava que eu deveria trabalhar como, por exemplo, Leonard Bernstein.
Folha – Você incluiria músicas de Frank Zappa e Sting num concerto de orquestra?
Nagano – Depende. A princípio não, porque são músicas que não se complementam muito bem. Não posso afirmar que incluiria músicas de Sting num concerto, mas incluiria sua participação. Como narrador, por exemplo, ele é poderoso. Sting e eu participamos da gravação de "A História do Soldado", de Stravinsky (o disco foi lançado no Brasil), em que ele era o narrador do texto. Quanto às músicas de Frank Zappa, algumas delas têm um caráter muito elevado e, para mim, estão entre as mais inventivas e originais deste século. Já incluí composições de Zappa em alguns programas, mas é preciso muito cuidado, porque a música dele é muito especial e em geral não combina com outras obras.
Folha – O que você enfatiza no repertório da Orquestra da Ópera de Lyon?
Nagano – A Orquestra de Lyon é relativamente jovem e, portanto, está ampliando seu repertório lenta e cuidadosamente. No momento estamos nos detendo num ciclo de Puccini, já fizemos "La Bohème", "Madame Butterfly", "Turandot", "Suor Angelica". São peças obrigatórias no repertório de uma companhia de ópera. Meu objetivo é estabelecer um repertório de bases sólidas.
Folha – Você procura equilibrar peças tradicionais e contemporâneas?
Nagano – Sim, acredito que uma orquestra deve aliar flexibilidade e virtuosismo, combinação que eu coloco para os músicos como um desafio. Procuro introduzir músicas contemporâneas, românticas, clássicas, antigas, barrocas. Se uma orquestra toca somente um tipo de música ela perde a versatilidade.
Folha – Qual a importância de interpretar pós-modernos, como John Adams?
Nagano – Se preocupar com a ópera, como performance, também significa pensar o repertório em termos de futuro. Para mim, John Adams é um compositor muito importante. Algum dia sua obra será parte do repertório principal das orquestras. Por outro lado, se não encorajamos artistas de enorme talento, se as companhias de ópera não investem em novas obras, aos poucos a ópera se tornará repetitiva e a ópera tradicional realmente morrerá.
Folha – O que faz da ópera uma expressão contemporânea?
Nagano – A ópera se torna contemporânea quando apresenta questões ou assuntos com os quais o público contemporâneo se identifica. As óperas de Mozart, por exemplo, falam sobre amor, traição, guerra ou ódio de uma forma tão clara e provocativa, que continuam relevantes até hoje.
Folha – Qual foi a produção mais audaciosa que a Orquestra de Lyon já realizou?
Nagano – Foi uma ópera de Bohuslav Martinu, chamada "Os Três Desejos". Trata-se de um enredo muito complicado, sobre a realização de um filme. O cenário é realmente um set de filmagem. O filme é feito durante a ópera e é projetado no final, quando as imagens têm que ser acompanhadas pela orquestra.
Folha – Há uma técnica especial para reger espetáculos de balé?
Nagano – Em geral as pessoas dão menos importância à regência de música para balé. Para mim, é uma expressão que proporciona ao maestro um desafio especial por que, para um músico, "tempo" e "pulso" são elementos básicos e conseguir mantê-los sob controle faz com que a execução da música se torne mais interessante, desafiadora e difícil. Perante uma companhia de balé, o tempo é determinado mais ou menos pelos bailarinos e a pulsação pode ser dançada mais devagar ou mais lentamente, de acordo com o tempo que o corpo humano precisa para respirar ou se mover. O maestro tem que ter uma sensibilidade especial para "entrar" no tempo dos dançarinos. Num balé os músicos têm que acompanhar corpos humanos trabalhando junto ou contra as forças da gravidade e isso é muito especial.

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