São Paulo, domingo, 20 de fevereiro de 1994
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Lésbicas brigam por visibilidade

CÉSAR BRAGA-PINTO
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE SÃO FRANCISCO

O lesbianismo nunca esteve em tanta evidência quanto nesse ano que passou. É no mínimo curioso que o tema da sexualidade feminina, tradicionalmente tido como o mais irrepresentável e ininteligível dos temas, de repente se torne manchete de jornais. É mais curioso ainda que particularmente a homossexualidade feminina ganhe destaque. Se a sexualidade feminina é irrepresentável, o amor e o sexo entre mulheres deveria ser duplamente inacessível. Pois o "establishment" sempre privilegiou tudo aquilo que pode ser mostrado e demonstrado, ou seja, o "visível": carros, roupas e todas as outras formas de riqueza material, mas também a Razão, a Beleza e o Real. Por isso, ao se discutir a inegável importância da "visibilidade" de grupos minoritários em geral, e de lésbicas em particular, não se deve deixar de refletir sobre esse eterno privilégio daquilo que sempre esteve em evidência, ou seja, da própria idéia de que o que tem mais valor é aquilo que se vê.
A maioria dos grupos ativistas americanos está convencida de que, politicamente, a visibilidade é essencial na luta pelos direitos de todos os chamados "grupos minoritários" e, em particular, no movimento homossexual feminino. Segundo Trish McDermott, chefe da "Lesbian Visibility Task Force" da GLAAD (Gay and Lesbian Alliance Against Defamation) de São Francisco, uma das principais formas de difamação contra lésbicas é a omissão. Por isso, GLAAD vem fazendo um trabalho que promove a frequente exposição de imagens de lésbicas em vários meios de comunicação, sem no entanto ignorar a diversidade existente dentro do próprio grupo. Um dos objetivos da GLAAD é fazer com que a presença de casais homossexuais se torne algo normal no espaço público, e não algo exótico ou estranho. Em dezembro do ano passado, a GLAAD começou uma campanha colocando 23 outdoors no estado da Califórnia, com duas mães lésbicas, de grupos étnicos diferentes, trazendo os seguintes dizeres: "Mais uma família tradicional". Em janeiro, mais outdoors do gênero foram espalhados, desta vez com lésbicas de idade. Outra campanha promocional pela GLAAD conseguiu que se incluísse uma referência a lesbianismo em livros didáticos.
McDermott concorda que o ano de 1993 foi fundamental para a visibilidade do lesbianismo, pelo menos nos Estados Unidos: as revistas "Newweek" e a "New York" deram capa ao assunto, a passeata em Washington recebeu extensa cobertura da mídia (ao contrário da passeata anterior, em 1987) e Roberta Achtenberg foi indicada para um alto cargo no governo federal (subsecretária da Habilitação e Desenvolvimento Urbano). Outro exemplo importante foi a inclusão de uma personagem lésbica no programa cómico "Rosanne", que vai ao ar semanalmente no horário nobre, e que conta com um dos maiores índices de audiência da televisão americana. Segundo McDermott, essa mudança não ocorreu da noite para o dia, mas é o resultado de, entre outras razões, muitos anos de ativismo político.
A representação de lésbicas pela mídia está longe de ser de forma acurada, mesmo em comparação com a representação de homossexuais masculinos. Durante a polêmica em torno de homossexuais nas Forças Armadas, pouca ou nenhuma referência foi feita a mulheres. A mídia mostrou a história como se fosse "um caso de homens brancos no chuveiro", diz McDermott, e no entanto, "mulheres têm sido dispensadas das Forças Armadas, por serem homossexuais, com uma frequência três vezes maior do que homens".
"Visibilidade" pode se manifestar ainda como um simples reflexo de estratégias específicas da sociedade de consumo. Assim, as campanhas de publicidade têm investido cada vez mais no público consumidor homossexual que, segundo MacDermott, uma vez conquistado, tende a ser dos mais fiéis. Marcas como a "Banana Republic", de roupas, e a Absolut Vodka, por exemplo, começaram a fazer campanhas publicitárias destinadas ao público homossexual e bissexual, tanto em revistas especializadas como na grande imprensa.
Além de geralmente promover estereótipos, a tendência da grande mídia em se referir às "lésbicas" traz um movimento de exclusão que pode ser até mais forte do que a tentativa de representação. O uso da terceira pessoa do plural, ("elas", ou "as lésbicas") sugere que lesbianismo é uma realidade distante, que não atinge o público da grande mídia, pois esse público seria, teoricamente, não-homossexual. Continua-se assim a ignorar que "lésbicas" podem ser nossas médicas, nossas chefes, nossas empregadas ou mesmo membros de nossa família: "Lesbianismo" se torna então algo distante, correndo o risco de se tornar alvo de piadas preconceituosas ou, o que é pior, de compaixão.
O recente interesse da grande mídia pelo "lesbianismo" tem também algo de voyeurístico, não muito diferente da tradicional presença de lésbicas em cenas de filmes pornográficos destinados ao público heterosexual masculino. Pode-se dizer que essa forma de "visibilidade" do lesbianismo de certa forma sempre existiu, mas não trouxe nenhum benefício às mulheres homossexuais. Ao contrário, cenas de lesbianismo no cinema são mais uma entre as várias formas de se ocultar ou de se apropriar de diferenças. No final, "visibilidade" pode se tornar mais um instrumento cuja função é colocar as minorias nos seus devidos lugares, ou seja, à margem de todo processo histórico e a serviço do poder patriarcal.
Como o objetivo de mostrar o preconceito na recente cobertura do tema do lesbianismo pela grande mídia, uma semana depois de a revista "Newsweek" ter trazido na capa a foto de duas mulheres e o título "Lésbicas – Quais são os limites da tolerância?", o "Bay Times", um dos maiores jornais americanos dedicados ao público homossexual, publicou, também na capa, um casal estereotipadamente heterossexual, com o título, "Heterossexuais: Quais são os limites da tolerância?". E enquanto a "Newsweek" trazia um glossário com definições de termos tais como "femme", "butch" e "lipstick lesbian", o "Bay Times" publicou o seu glossário incluindo termos como "wife", "husband" e "marriage". A atitude do "Bay Gardian" é, mesmo que limitada, significativa, porque reverte à oposição entre marginais e não-marginais, mostrando que os grupos minoritários não querem só ser representados, mas também representar e participar ativamente do processo histórico.
Outro problema da recente representação de lésbicas pela grande mídia é que, em geral, há uma tendência à estilização que reforça preconceitos mais do que libera. O fenômeno de mídia "lesbian chic" lançado pela revista "New York", por exemplo, traz uma forte conotação de classe, de etnia e de idade. Assim, ao invés de abrir as portas para a homossexualidade feminina, cria-se a idéia de que até mesmo a orientação sexual é um privilégio de poucos. No fundo, o lesbianismo continua sendo marginalizado, enquanto ser "chic", com todas as conotações elitistas que o termo traz, é supervalorizado. Não somente há uma grande banalização do modo de vida do outro, resumindo-o a um "estilo", mas, o que é pior, ao se apresentar lesbianismo enquanto uma moda, fica implícito que mais cedo ou mais tarde essa moda vai passar.
A situação começa a mudar assim que os próprios grupos minoritários começam a criar seus próprios discursos. A própria idéia de que heterossexualismo é "normal" começa a ser colocada em questão. A crítica americana Adrienne Rich, por exemplo, sugere que, na verdade, a primeira relação de afeto que toda mulher experimenta, é com outra mulher, isto é, com a mãe. Assim, a homossexualidade feminina não seria nenhum tipo de aberração. Ao contrário, a heterossexualidade é que seria algo imposto às mulheres que são, todas, mais ou menos homossexuais. Sendo assim, o lugar-comum de que mulheres são, por natureza, atraídas pelo sexo oposto, e de que lesbianismo é nada mais do que o resultado de uma má experiência com homens, perde todo o seu sentido, e dá lugar ao que Rich chama de "heterossexualidade compulsória".
O ativismo político e a produção intelectual que vem sendo produzida dos pontos de vista feminino e homossexual trouxeram o questionamento das tradicionais categorias de sexo, sexualidade, gênero e da própria noção de "identidade". A idéia de "visibilidade" depende da existência de uma "identidade" fixa que possa ser apresentada como definição de um indíviduo ou de um grupo. Mas apesar dos limites de qualquer noção de "identidade", é necessário que a homossexualidade não só se torne visível, mas que ela seja tão valorizada quanto a heterossexualidade. É necessário que se assuma a homossexualidade publicamente, para além dos ambíguos termos de uma suposta "bissexualidade universal". Ao mesmo tempo, não se deve perder de vista o fato de que a valorização do visível de certo modo reafirma o poder patriarcal e falocêntrico, assim como de seus mecanismos de dominação. E, mesmo assumindo-se publicamente uma identidade, não se deve esquecer que o "visível" não é necessariamente o verdadeiro, ou, pelo menos, não é a única e definitiva verdade. E que, no final das contas, existe algo de revolucionário em tudo aquilo que resiste a qualquuer forma de representação, e que, em última análise, não pode ser compreendido em termos de "visibilidade" ou "identidade".

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