São Paulo, quinta-feira, 24 de fevereiro de 1994
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A América Latina precisa investir em ciência

FRANCISCO AYALA

A recente aprovação do Acordo Norte-Americano de Livre Comércio (Nafta) e o interesse crescente por parte dos Estados Unidos em mercados globais representam uma promessa de maior comércio entre os países do hemisfério ocidental. O empenho dos Estados Unidos em expandir sua própria economia mediante a redução das barreiras comerciais é compartilhado por várias nações da América Latina e do Caribe. Há muitos que acreditam que um Mercado Comum Pan-Americano já se vislumbra no horizonte.
Mas, antes que isto possa ocorrer, acredito que a América Latina precisa subir na hierarquia da "cadeia de alimentos". Como biólogo, sei que a cadeia alimentar se estende desde organismos pequeniníssimos, tais como os plânctons, que obtêm energia a partir de fontes de baixa concentração, até grandes predadores, como os tubarões, que se aproveitam de fontes concentradas de energia alimentar.
Assim, também, na esfera econômica existe uma "cadeia de alimentos" de produtos que variam desde, digamos, minério de ferro, que é uma matéria-prima de baixo valor, até produtos de alto valor, tais como automóveis. Semelhante aos animais na parte superior da cadeia de alimentos, os produtos de alto valor dependem de uma cadeia de produtos de menor valor –lingotes de ferro, aço, peças de maquinaria– para a sua existência.
A diferença entre a sílica encontrada na areia, ou seja, um produto na parte inferior da escala, e a sílica encontrada nos chips de computadores, que valem milhões de dólares por libra de peso, é primordialmente uma diferença na quantidade de valor conferido pela tecnologia. Os chips de computadores possuem maior valor que a areia porque a ciência e a tecnologia converteram a mesma substância encontrada em um material de construção, a areia, em dispositivos eletrônicos com um grau de utilidade inerentemente maior.
Na sua infância, a economia dos Estados Unidos era baseada em produtos de baixo valor na escala econômica. Por exemplo, os Estados Unidos produziam algodão, que era levado aos moinhos de alta tecnologia na Inglaterra para ser convertido em tecidos valiosos. A transformação de produtos de baixo valor em produtos de alto valor requer uma infra-estrutura científica e tecnológica. Reconhecendo a importância da infra-estrutura científica, as nações industrializadas investiram intensamente nas universiades e nos laboratórios de pesquisa. A indústria privada utilizou esta infra-estrutura científica e ampliou-a com mais investimentos em pesquisa.
O resultado disto foi uma capacidade para gerar produtos de alto valor e consequentemente um padrão de vida mais elevado. A terra, a água e o ar dos Estados Unidos diferem em pouco de qualquer outra parte do mundo. Um fator importante que tansformou os Estados Unidos em líder no comércio foi o reconhecimento, já no início, do papel crucial desempenhado pela ciência e pela tecnologia no sucesso econômico.
América Latina tem cientistas que realizam pesquisas do mesmo grau de qualidade quanto os laboratórios na América do Norte, Europa e Japão. Testemunhei este nível de excelência pessoalmente em vários anos de colaboração com equipes de pesquisa latino-americanas. E, em praticamnete todas as disciplinas, estudanates de pós-graduação de países da América Latina demonstraram a sua capacidade ao se formarem em cursos avançados em universidades norte-americanas, antes de retornarem aos seus países de origem.
Mas apesar destes núcleos de excelência, a ciência na América Latina não conta com investimentos suficientes por parte dos governos e do setor privado. Simplesmente, não existe uma quantidade suficiente de iniciativas científicas. Talvez mais importante ainda seja o fato de que os investimentos feitos no campo da ciência carecem de uma continuidade vital de verbas. Uma equipe científica produtiva, que necessitou de anos de investimento para ser formada, pode ser destruída, praticamente, da noite para o dia quando as verbas são suspensas subitamente.
A criação de uma infra-estrutura científica vigorosa também depende do compromisso assumido em termos de educação no campo da ciência, já começando nos primeiros anos escolares. A conscientização quanto a este fator crucial na formação de uma infra-estrutura cietífica eficaz –ou seja, pesquisadores capazes– levou ao fortalecimento da educação científica em nível pré-universitário como uma prioridade importante nos Estados Unidos.
No meu novo cargo de presidente da Associação Americana para o Avanço da Ciência (American Association for the Advancement of Science - AAAS), que assumo hoje, estou empenhado em uma busca de iniciativas que fortaleçam a ciência na América Latina e no Caribe. Os esforços iniciais se concentrarão na conservação da biodiversidade. A grande diversidade de recursos biológicos é uma das riquezas da América Latina e será necessário fortalecer os sistemas de comunicação e informação que interligam as equipes de pesquisa latino-americanas a fim de proteger estas riquezas e fazer com que sua utilização seja sustentável a longo prazo.
Como segunda iniciativa, estamos considerando maneiras de colaborar com países da América Latina e do Caribe no sentido de uma melhoria na educação científica, tanto no Norte como no Sul. Os modelos e a abordagem didática para o ensino científico não dependem do idioma nem das condições de qualquer região em particular.
A longo prazo, a AAAS espera estabelecer uma Fundação Pan-Americana de Ciência e Tecnologia (Pastf) –um fundo de doações que fornecerá subvenções para cientistas através de toda a região. Este é claramente um projeto que requer um tempo considerável para ser realizado, mas que promete abordar o problema da incerteza dos orçamentos destinados à atividade de pesquisa, afetados pelo clima político sempre em transformação.
O respaldo para a criação de uma fundação e para os outros projetos terá de ser obtido a partir de uma variedade de fontes, tanto governamentais como privadas. Uma técnica criativa para gerar fundos é a "conversão da dívida" ("debt swap"). Vários países latino-americanos contraíram grandes dívidas com bancos dos Estados Unidos que têm sido negociadas a preços descontados no mercado aberto. Com a utilização de uma combinação de incentivos fiscais e doações privadas, estes descontos poderiam ser usados como alavanca ("leverage"), de maneira a permitir que a dívida seja saldada e os fundos provenientes sejam aplicados em pesquisa científica nos países devedores.
O compromisso da AAAS de melhorar as condições da ciência nos países da América Latina e do Caribe promoverá o crescimento econômico e a prosperidade através de todo o hemisfério ocidental. Mas a associação não poderá realizar isto sozinha e nem seria apropriado tentar assim fazê-lo. Os governos e as indústrias do setor privado nas nações latino-americanas precisam reconhecer esta oportunidade de investimento no seu futuro, unindo-se a esta iniciativa de colaboração, para fazer com que a ciência progrida para o benefício de todos.

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