São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 1994
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Que delícia de máquina

JURANDIR FREIRE COSTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O fato passou quase despercebido. Um jornal do Rio de Janeiro, há dois ou três meses, publicava a notícia de mais uma estripulia dos chamados hackers. Um garoto de 16 anos teria descoberto a senha que dava acesso à rede do IMPA – Instituto de Matemática Pura e Aplicada. Além do mais, teria mandado aos usuários do IMPA, a seguinte mensagem: "Normalmente, os usuários usam como password um password idiota". Segundo a matéria, o Instituto teria perdido 20 dias de trabalho, a "sociedade" teria sido prejudicada e a principal queixa do administrador da Internet para o IMPA era "a virtual ausência de legislação específica no país para punir este tipo de crime". Até aqui, o evento. Passemos ao julgamento. O administrador da Internet, apesar de reclamar da "virtual ausência de legislação para o crime" já sabia que o acontecimento era um "crime", comparava o garoto a um suposto "ladrão" de livros em bibliotecas públicas e "acreditava na necessidade de uma legislação "olho por olho". O jornalista, por sua vez, chamava o garoto de "geninho do crime", "merdinha", "mauricinho" e, para concluir, queixando-se de uma emissora de televisão que, tempos atrás, fizera um programa sobre os hackers, dizia: "É, a gente sabe: tem muita gente que, em vez de enfocar, preferia enforcar esses porcarias. Mas fique frio (citava o nome do administrador). Como os grafiteiros, os hackers não passam de adolescentes mal resolvidos, cheios de complexos e problemas sexuais".
Na minha opinião, ninguém pode achar correto o que o garoto fez. O IMPA é uma instituição científica e o trabalho dos profissionais da área é árduo e, como qualquer trabalho, por princípio, deve ser respeitado. O problema é como avaliar a incorreção da conduta. Em primeiro lugar, por que chamar de crime alguma coisa que ainda não está legislada. Infração à norma de condutas só é crime quando está jurídicamente estabelecido que assim é. Fora disso, pode-se lamentar, "achar feio" e procurar convencer o infrator de que tal conduta é indesejável. A informação, a persuasão e a educação vêm antes da punição. Em segundo lugar, por que comparar a atitude infratora a roubo. Roubo é apropriação privada e ilegal de um bem pertencente a outrem. O que o garoto roubou? Em terceiro lugar, vem a reação ao fato, e isto é o mais importante. As injúrias dirigidas ao hacker são ou não uma infração às nossas normas morais? Ninguém tem o direito de humilhar de modo ostensivo quem quer que seja, mesmo quando se trata de um criminoso, o que, em absoluto, é o caso. Especialmente quando o agressor moral está escudado no poder de um jornal de grande divulgação e credibilidade pública. Isto é arrogância; isto é abuso de poder! Também faz parte de nossa tradição moral saber que adolescentes são curiosos e, às vezes, rebeldes e "enragés". Na democracia, isto nunca foi motivo para que fossem postos no pelourinho, no "paredón" ou para que tivessem seus nomes publicamente escritos em "dazibaos". Mas intolerância não é prerrogativa de regimes comunistas, nazistas ou ditatoriais, nem existe só na política. Conhecemos intolerância moral, religiosa, racial, sexual e, agora, ao que tudo indica, começam os tempos da "intolerância informática".
O que salta à vista na matéria é, sobretudo, o fascínio com que os "juízes" do "crime" velam pela honra das sacrossantas máquinas que cultuam. Nem por um segundo, ao que parece, pensaram no que pode significar, para um adolescente ou para sua família, ver-se comparado publicamente a grafiteiros, ladrões, criminosos, "merdinhas", "porcarias", "complexados sexuais" etc. Numa cultura onde a imaginação deixou de ser artística, política ou moral, o bem e o mal passaram a concentrar-se no reino da computação. Não se pensa mais em "enforcar" dissidentes políticos ou em insultá-los de modo grosseiro. A política já não interessa às elites intelectuais. Imaginar, polemizar, discutir o que seria um mundo melhor e mais justo, caiu de moda. A grande preocupação é ficar "up-to-date" com as últimas novidades americanas e japonesas em matéria de informática. É assim no "Primeiro Mundo"; tem de ser assim entre nós. Mas, como somos seres inventivos e imprevisíveis, um dia um garoto de 16 anos resolve conhecer por dentro, o que, cá fora, dizem a ele e a outros garotos como ele, é tudo o que de interessante existe a fazer e a conhecer no mundo de hoje. Então decifra senhas, causa pânico, raiva e pedidos de retaliação absolutamente descabidos para quem não está convertido à moral das máquinas maravilhosas e seus servidores humanóides.
Até segunda ordem, e na falta de melhores idéias, tudo isto é excessivo, despropositado e equivocado. Na "velha moral" da liberdade e dos direitos individuais, a solução seria outra. Chamava-se o garoto e dizia-se que sua atitude não foi justa porque poderia ter consequências que ele talvez não tivesse podido prever. Em seguida, mostrava-se que sua maneira de dizer que o indivíduo ainda é bem mais interessante do que a máquina não foi boa, pois prejudicou o trabalho da instituição. Finalmente, pedia-se sua colaboração para, quem sabe, fazer melhor o que os outros não souberam fazer tão bem. Aqui, sim, cabe evocar a psicanálise. "Narcisismo informático" não se resolve a golpes de humilhações contra adolescentes inteligentes e não-conformistas.

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