São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 1994 |
Texto Anterior |
Próximo Texto |
Índice
Que delícia de máquina
JURANDIR FREIRE COSTA
Na minha opinião, ninguém pode achar correto o que o garoto fez. O IMPA é uma instituição científica e o trabalho dos profissionais da área é árduo e, como qualquer trabalho, por princípio, deve ser respeitado. O problema é como avaliar a incorreção da conduta. Em primeiro lugar, por que chamar de crime alguma coisa que ainda não está legislada. Infração à norma de condutas só é crime quando está jurídicamente estabelecido que assim é. Fora disso, pode-se lamentar, "achar feio" e procurar convencer o infrator de que tal conduta é indesejável. A informação, a persuasão e a educação vêm antes da punição. Em segundo lugar, por que comparar a atitude infratora a roubo. Roubo é apropriação privada e ilegal de um bem pertencente a outrem. O que o garoto roubou? Em terceiro lugar, vem a reação ao fato, e isto é o mais importante. As injúrias dirigidas ao hacker são ou não uma infração às nossas normas morais? Ninguém tem o direito de humilhar de modo ostensivo quem quer que seja, mesmo quando se trata de um criminoso, o que, em absoluto, é o caso. Especialmente quando o agressor moral está escudado no poder de um jornal de grande divulgação e credibilidade pública. Isto é arrogância; isto é abuso de poder! Também faz parte de nossa tradição moral saber que adolescentes são curiosos e, às vezes, rebeldes e "enragés". Na democracia, isto nunca foi motivo para que fossem postos no pelourinho, no "paredón" ou para que tivessem seus nomes publicamente escritos em "dazibaos". Mas intolerância não é prerrogativa de regimes comunistas, nazistas ou ditatoriais, nem existe só na política. Conhecemos intolerância moral, religiosa, racial, sexual e, agora, ao que tudo indica, começam os tempos da "intolerância informática". O que salta à vista na matéria é, sobretudo, o fascínio com que os "juízes" do "crime" velam pela honra das sacrossantas máquinas que cultuam. Nem por um segundo, ao que parece, pensaram no que pode significar, para um adolescente ou para sua família, ver-se comparado publicamente a grafiteiros, ladrões, criminosos, "merdinhas", "porcarias", "complexados sexuais" etc. Numa cultura onde a imaginação deixou de ser artística, política ou moral, o bem e o mal passaram a concentrar-se no reino da computação. Não se pensa mais em "enforcar" dissidentes políticos ou em insultá-los de modo grosseiro. A política já não interessa às elites intelectuais. Imaginar, polemizar, discutir o que seria um mundo melhor e mais justo, caiu de moda. A grande preocupação é ficar "up-to-date" com as últimas novidades americanas e japonesas em matéria de informática. É assim no "Primeiro Mundo"; tem de ser assim entre nós. Mas, como somos seres inventivos e imprevisíveis, um dia um garoto de 16 anos resolve conhecer por dentro, o que, cá fora, dizem a ele e a outros garotos como ele, é tudo o que de interessante existe a fazer e a conhecer no mundo de hoje. Então decifra senhas, causa pânico, raiva e pedidos de retaliação absolutamente descabidos para quem não está convertido à moral das máquinas maravilhosas e seus servidores humanóides. Até segunda ordem, e na falta de melhores idéias, tudo isto é excessivo, despropositado e equivocado. Na "velha moral" da liberdade e dos direitos individuais, a solução seria outra. Chamava-se o garoto e dizia-se que sua atitude não foi justa porque poderia ter consequências que ele talvez não tivesse podido prever. Em seguida, mostrava-se que sua maneira de dizer que o indivíduo ainda é bem mais interessante do que a máquina não foi boa, pois prejudicou o trabalho da instituição. Finalmente, pedia-se sua colaboração para, quem sabe, fazer melhor o que os outros não souberam fazer tão bem. Aqui, sim, cabe evocar a psicanálise. "Narcisismo informático" não se resolve a golpes de humilhações contra adolescentes inteligentes e não-conformistas. Texto Anterior: Thomas encontra a Esfinge da narrativa; A PEÇA Próximo Texto: Harnoncourt rejeita tradição romântica Índice |
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress. |