São Paulo, terça-feira, 1 de março de 1994
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Valeska Soares deixa arte morrer ao vivo

BERNARDO CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Exposição: Valeska Soares
Obras: Instalação, objetos e fotografias
Quando: De hoje, às 20h (abertura), até dia 19, de segunda a sexta, das 10h às 20h; sábados, das 10h às 14h
Onde: galeria Camargo Villaça (r. Fradique Coutinho, 1.500, Vila Madalena, tel. 210-7390)

Há uma imagem horrível na nova exposição de Valeska Soares. A fotografia de um buraco que se assemelha a um umbigo mas não é, um buraco em forma de gota de onde sai uma secreção prateada, colocado (porque há um aspecto artificial nessa fenda) em alguma parte irreconhecível de um corpo humano emoldurado por um tecido de veludo vermelho. Quando você pergunta à artista o que é aquele buraco, ela responde com um sorriso: "O que você acha?"
"O que me interessa é o momento em que você está suspendido na vertigem. É uma fantasia você pensar que é puro ou perverso. Na verdade, você é as duas coisas", diz Soares, 37, que está entre os brasileiros selecionados para a Bienal de São Paulo deste ano.
"Trabalho com um sistema de oposições: repulsa/atração, feminino/masculino", diz a artista. Sua representação do corpo, por exemplo, carrega a marca de algo artificial, construído, falso. O mais perturbador, porém, é que essa "artificialidade" não é um mero jogo de simulações estéticas. O artifício se manifesta como incisão na própria carne (o buraco da fotografia é na realidade a cicatriz ainda aberta resultante da remoção de um quisto entre os seios de uma mulher).
É inevitável a associação a um universo como o de David Lynch, onde as simulações têm um contraponto imediato na carne (a orelha cortada de "Veludo Azul"), um horror ao mesmo tempo completamente artificial e radicalmente físico, o fundamento da própria idéia do monstro, em que um ser imaginário ganha uma materialidade insuportável.
Nessa ambiguidade, o trabalho de Valeska Soares tende a sofrer os equívocos de uma apreensão pelo lado "feminista". As imagens são explicitamente relacionadas a toda uma simbologia feminina –por vezes demasiado óbvia. Ao mesmo tempo em que tende a colher os louros de uma leitura feminista sobretudo num país como os Estados Unidos (Soares cursa atualmente mestrado no Pratt Institute, em Nova York), onde essa simbologia pode servir como uma tática de inserção no mercado, a artista corre o risco de ser enfurnada dentro dos limites excessivamente estreitos de uma arte militante.
"Não acho que a leitura feminista seja um problema. Não tenho nenhum interesse em fazer um feminismo didático ou pedagógico, mas também não posso deixar de trabalhar com o imaginário feminino. Não posso deixar de ser o que sou", diz.
Soares usa rosas. Essência de rosas e as próprias flores espalhadas pelo chão em instalações. Na galeria Camargo Villaça, serão cerca de 6.500 rosas jogadas no chão diante de um nicho vazio feito com cera de abelha, à semelhança de um nicho para santinhos.
"Tenho um repertório de materiais que têm uma carga simbólica ambígua. Uma imagem ao mesmo tempo sacra e promíscua. As rosas têm essa ambivalência. Podem ser morte e amor, paixão e sofrimento. Não estou interessada numa narrativa horizontal mas vertical", diz a artista cujo "repertório de materiais" inclui também vison, carne, autênticos ex-votos de madeira (por vezes, encontrados em feirinhas de Nova York, "provavelmente roubados de igrejas"), algodão e porcelana, que ela usa em instalações, fotografias e na criação de objetos.
No caso das rosas, o que fica é uma sensação de luto, de fim de festa, algo morrendo ao vivo. Algo está morrendo o tempo todo no trabalho de Valeska Soares, como se houvesse nessas instalações a representação de um sentido trágico da própria arte hoje. "Depende do lugar. Em Nova York, as rosas secam. Aqui, elas ficam podres por causa da umidade. A rosa não está viva desde o começo. A partir do momento em que você a corta da roseira. Você tem uma fantasia de que ela está viva. A idéia da instalação é que as pessoas pisem nas rosas mesmo, esmaguem as rosas com os pés", diz.

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