São Paulo, quinta-feira, 3 de março de 1994
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Doces ocultam a alma negra de Viena

DAVID DREW ZINGG
EM VIENA

"Nunca entre num café sem ter schillings suficientes", me aconselhou um repórter de um jornal de Viena, "e nunca entre nos Vienerwald (Bosques Vienenses) sozinho".
A melhor companhia para quem vai viajar a Viena é um bom livro, e há toda uma leva de novos e bons livros no mercado. "Alma Mahler on the Art of Being Loved" (A Arte de Ser Amada, por Alma Mahler) saiu pela Oxford University Press. Você pode também ler tudo sobre "Gustave Klimt and Emilie Fluge: an Artist and his Muse" (Gustave Klimt e Emilie Fluge: um Artista e sua Musa), publicado pela Overlook.
Mas o melhor livro, de longe, a transmitir a sensação global do que foi e do que é esta grande cidade é "The Viennese: Splendor, Twilight and Exile" (Os Vienenses: Esplendor, Crepúsculo e Exílio), de Paul Hofmann. Este livro é editado pela Anchor Books e pode frequentemente ser encontrado naquela Barnes & Noble de Sampa que é a Livraria Cultura.
Hofmann deve conhecer seu tema. Ele nasceu na cidade esquizofrênica sobre a qual escreve. Ele deixou Viena para viver em outra Viena no exílio –Nova York–, e tornou-se repórter da "Senhora Cinzenta da Rua 43", o "The New York Times".
"É quase impossível penetrar o segredo de um apartamento vienense", diz o livro. "O austríaco vive num apartamento de dois cômodos. Um deles é a sala de estar alegre e bem iluminada onde ele recebe suas visitas. O outro é um quarto escuro, sombrio, gradeado, totalmente inescrutável".
"Se os visitantes recebidos na simpática sala de estar não forem ingênuos, eles começarão em pouco tempo a lançar olhares de soslaio para o 'outro quarto' onde também vive a ambivalente personalidade vienense".
A alma negra e ensombrecida desta cidade tem sido uma obsessão vienense desde pelo menos a época de Freud, Arthur Schnitzler e Robert Musil.
Quando Siggie Freud começou a pesquisar a histeria e todos aqueles outros pesadelos excitantes, ele encontrou um emaranhado sinistro de históricos de caso na cidade aparentemente plácida às margens do Danúbio.
As histórias da cidade nem sempre são encantadoras ou saborosas, mas na obra-prima concisa de Hofmann, elas valem por ótimo material de leitura.
A cidade que você, Joãozinho, ama por suas valsas alegres, por seu "gemutlichkeit" de Velho Mundo e por seus cremosos doces de confeitaria, também tem sido um campo fértil para a reprodução de xenofobia, anti-semitismo, fascismo e suicídio. Este último é uma forma de arte vienense.
Hofmann nota que estas incongruências pesam muito sobre os próprios vienenses, especialmente os artistas, intelectuais e judeus.
Para o tio Dave, a história de Viena no século 20 lembra constantemente a do Brasil contemporâneo. Aquela velha e amarga piada sobre o aeroporto ser a melhor saída para o país era uma favorita em Viena.
Entre as figuras mais importantes deste século, Wittgenstein, Musil e Adolph Loos (um arquiteto e designer que pressagiou Hans Donner em matéria de limpeza) fugiram da cidade, frustrados. Donner também fugiu, 50 anos mais tarde, mas isso já é outra história.
Outros, como Freud, Arnold Schoenberg, Stephan Zweig (que se matou em Petrópolis), Bruno Walter e Billy Wilder foram todos levados ao exílio.
"Viena sempre se esmerou em punir os artistas", diz Hofmann, cometendo certa redundância.
Não me entendam mal –o brilhante livro de Hofmann também está repleto de diversão num plano bem mais leve. Se você pretende vir a esta cidade fascinante, complexa, gloriosa, esse livro é fundamental.
É como estar acompanhado de um amigo na noite escura nos Bosques de Viena.
Modernistas estão aqui
A primavera é uma estação muito modern(ist)a em Viena. Kokoschka, Chagall e Picasso são temas de retrospectivas separadas aqui, a partir da semana que vem. Esse trio profano também integra uma mostra de obras-primas do século 20 que será exposta aqui.
Kokoschka foi um dos expressionistas pioneiros. Ele costumava visitar o antro pessoal do tio Dave nesta cidade, o Café Central, que lembra uma catedral. Sua exposição começa no dia 2 de março, na Albertina, e vai até 23 de maio. Dá tempo de você dar um pulo aqui e aprender alguma coisa, Joãozinho. A mostra contém principalmente desenhos e aquarelas.
Ela inclui estudos feitos para o lendário Wiener Workstatte. Há retratos de Karl Kraus e, para quem gosta do tipo vienense de mulher, retratos da musa de Kokoschka, Alma Mahler.
A exposição do Guggenheim fica no Kunstforum de 4 de março a 5 de junho. Ela oferece uma seleção representativa do modernismo clássico, com 70 importantes pinturas e esculturas do primeiro time. Picasso, Kandinsky, Klee, Matisse e Modigliani fazem parte da comissão de frente.
A austríaca que foi meu par no Opernball está hospedada numa pensão de alta classe chamada Aclon. Ela fica no centrão da cidade, ao lado de outro grande café, o Hawelka. Do outro lado da rua fica o Buffet Trzesniewski, a melhor sanduicheria de Viena. Um pouco mais longe na mesma rua, há o Dorotheum, a Sotheby's ou Christie's. O que minha amiga não sabia é que um pouco mais para baixo na sua mesma rua também há o Museu Judaico, um dos lugares mais chiques de Viena.
A partir de 11 de março o museu vai abrigar uma rara exposição da produção de Marc Chagall na Rússia –de 1908 a 1920. Ela é composta por 50 pinturas a óleo, aquarelas e desenhos. A maioria destas obras raramente foi vista no Ocidente. Algumas das mais interessantes são uma série de pinturas a óleo em tamanho maior do que natural, e trabalhos fortemente coloridos, típicos de Chagall, que captam o ambiente de vilarejo do lugar onde o artista vivia, na Rússia Branca.
Viena consome arte do mesmo jeito que consome "apfelstrudel" –muito de uma vez.
Para culminar a festa dessa primavera, o Museu do Século 20 vai apresentar uma exposição de Picasso. Haverá 180 pinturas, desenhos, colagens, bronzes e cerâmicas da coleção Ludwig. É uma visão impressionante dos 70 anos de criatividade do artista. "Mit Schlagopers".
Sapatos de baile
Viena é uma cidade encharcada de música. Em todo lugar onde você vai há alguma coisa que te lembra a grande herança musical da cidade, ou o grande Império Austro-Húngaro, ou as duas coisas.
Agora vem uma grande notícia para aqueles de vocês que são pedófilos ou românticos (ou pedófilos românticos). No dia 8 de março o Dorotheum (o Sotheby's e Christie's de Viena) vai colocar à venda um par muito especial de botinhas. Elas são feitas de seda creme (que outra cor poderia ser mais apropriada para esta cidade?), couro e renda antiga. As botas têm um preço respeitável e origem na realeza.
Elas foram feitas por volta do ano 1880, e serão leiloadas por algo entre US$ 2.000 e 2.500.
As botinhas pertenciam à Kaiserin (mulher do imperador Franz Josef) Elisabeth. A Kaiserin era uma mulher estonteantemente bela. Ela foi assassinada por um italiano em Genebra e deixou viúvo o imperador Franz Josef, fisicamente também muito atraente.
Tio Dave está pensando seriamente em vender alguma parte estratégica de seu corpo para arrumar dinheiro para comprar estes classudos sapatinhos de baile. Não é uma tara pedófila, Joãozinho. Tio Dave raciocina que se ele as comprar e as doar a sua companheira austríaca de dança, talvez ela pense duas vezes no próximo Opernball antes de colocar seus sapatinhos reais em cima dos pezinhos sofredores de Dave.
Carregue na mostarda
As Olimpíadas de Inverno terminaram com algumas medalhas para os austríacos, mas a polícia de Lillehammer teve outro motivo para se interessar pelo pessoal vindo das montanhas vienenses.
Vários visitantes foram interpelados por policiais no Parque Olímpico por grelharem seus Wienerwurst (uma espécie de cachorro- quente nativo) em cima da –chama olímpica. Um tira disse que "eles devem estar usando espetos de 20 metros de comprimento".
Ainda há tempo
Certa noite destas, tio Dave estava na gandaia, bebendo vinho novo num dos "Heurige" vienenses. Estes são lugares simpáticos onde você toma todas num clima simpático, enquanto um violinista canta e toca canções de séculos de idade bem debaixo de teu nariz.
Uma amiga traduziu esta canção, que é uma "carpe diem" que descende diretamente daquele velho bon vivant romano, Horácio:
Haverá vinho outra vez
E nós não mais estaremos aqui
Portanto, saboreemos a vida
Enquando ainda podemos desfrutar dela...
Haverá garotas bonitas
E nós não mais estaremos vivos
Portanto, vamos a elas
Enquanto ainda é tempo.

Tradução de Clara Allain

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