São Paulo, sexta-feira, 4 de março de 1994
Texto Anterior | Índice

O dragão do Pompeu

JOSÉ SARNEY

A política é ficção e realidade. Ao chegar, em 1955, ao Palácio Tiradentes, vi a beleza do teatro político de brilhos e vaidades. Havia ainda restos do cerimonial que presidia os tempos do Império e da Velha República.
A Câmara, no Rio de Janeiro, tinha muito de simbolismo. O plenário guardava os restos da "belle époque", com seus vitrais e a cúpula. Nas tribunas de honra podiam ser vistas damas elegantes participando do espetáculo. O discurso parlamentar era como se fosse uma peça de teatro. Os oradores tinham os gestos estudados. Lembro-me do estilo antieloquência, de Otávio Mangabeira. Ele falava como se conversasse. Seguia conselho do Marquês de Abrantes, o expoente das excelências parlamentares: "O discurso deve ser como a escrita".
Leio, em Octavio Paz, que há uma estreita relação entre o teatro e a política. A desgraça, agora, que a política está se transformando numa forma de entretenimento. É uma indústria do espetáculo e começa a se ter saudade da política teatro, com todas as suas grandes vedetes.
Carlos Lacerda, num discurso memorável, a que eu assisti e que, hoje, faz parte da história parlamentar do país ("A Corrida dos Touros Embolados"), dizia que no Parlamento fingia-se tudo: o apoio, a oposição, os elogios, as críticas, os aplausos, as vaias, e terminava numa afirmativa que parecia ser dirigida a ele mesmo: "Aqui, até o ódio é fingido".
Não sei se o Brasil sabe, mas Brasília transformou-se num grande palco onde a política faz essa ligação explícita com o teatro. Todo dia é dia de protesto. Os jardins do Congresso são um grande palco, onde diariamente se finge a revolta. O protesto passou a ser uma diversão. Os protestantes são os mesmos, e todos fazem o mesmo discurso, gritam os mesmos comandos e se elogiam e se agradecem. Eles mesmos falam e se ouvem. Nada muda. Vêm caravanas de todos os Estados, e sempre são as mesmas pessoas.
O tema pode variar, mas a fisionomia é a mesma, a mesma montagem, as mesmas bandeiras e o mesmo refrão. É política? É o teatro político, já uma mistura de diversão e ação, em que os atores são ao mesmo tempo o elenco e a platéia. A realidade é uma ficção.
Passei os primeiros meses do meu governo sitiado pelos, hoje, veteranos do protesto de Brasília. Só sumiu o dragão, um dragão de papel, daqueles chineses, que tinha à frente o nosso legendário Pompeu de Sousa, extraordinária figura humana. Depois, Pompeu era o secretário de Educação. Os mesmos protestadores de sempre, já profissionais, continuaram os protestos. Pompeu, já governo, estava comigo e o governador de Brasília, no gabinete, tratando do salário das professoras. Minha secretária me avisa que havia uma grande manifestação em frente ao Palácio, promovida pelas professoras. Com bom humor, perguntei: "Trouxeram o dragão do Pompeu?" Ela me respondeu:
– Não, presidente, elas estão gritando: "Cadê o Pompeu? Dragão comeu..."
Vejo de novo os protestos contra o Plano FHC 2 com o desfalque dos que, em 1985, estavam gritando e, hoje, são gritados em 94.
Mas tudo é nostálgico e tem uma face de coisas mortas, além de uma profunda solidão.

Texto Anterior: Hora e vez da pataca
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.