São Paulo, sábado, 5 de março de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Canto de Gal supera ousadias de Thomas

JOÃO MÁXIMO
DA SUCURSAL DO RIO

Relâmpagos, trovões, luzes feéricas. Fumaça, cacofonias, gritos lancinantes. Os primeiros cinco minutos de "O Sorriso do Gato de Alice –show que Gal Costa estreou anteontem no Imperator, Méier, zona norte do Rio– chegaram a preocupar. Deslizando sobre um telhado como uma gata sinuosa, ela se movia mas não cantava. Ao contrário do que havia antecipado, parecia deixar que o ambicioso aparato audiovisual montado por Gerald Thomas se sobrepusesse ao seu canto. Mas não. Tão logo começou a cantar "Solitude", soube-se que a voz mais abençoada do Brasil, e não o homem que a dirigia, seria a estrela da noite.
Um show para ninguém ficar indiferente. Nem fãs nem desafetos (fãs dela, desafetos de Thomas). Gal é das mais carismáticas artistas brasileiras. Mais magra, mais bonita e mais sensual que nunca, tem irresistível presença no palco. Movimenta-se com graça e segurança, e não perde o aprumo mesmo quando os fãs reagem com exagerados uis e uaus. Ou quando uma voz feminina, lá de um canto, suplica aos gritos: "Tira a roupa, Gal!". No máximo, exibe generosa e desafiadoramente os seios enquanto canta "...Brasil, mostra tua cara...", voltando a fazê-lo em "Tropicália" e "Baby". Mais à vontade do que quando desfilou pela Mangueira.
Quanto aos desafetos de Thomas, vão lá para não gostar. Torcem o nariz para as ambições formais do diretor, ficam sem entender os ruídos e muito menos os dez guarda-chuvas dependurados no palco. Também se recusam a admitir que a plataforma cor de telha sobra a qual Gal canta é um telhado. Mas há muito de má vontade nessas restrições. Mesmo considerando que o espetáculo começa com uma cara (a proposta teatral e algo wagneriana de Thomas) e acaba com outra (um simples recital, como queria Gal), e mesmo reconhecendo que certas ousadias não funcionam, Thomas é o responsável por alguns grandes momentos da noite. Por exemplo: Gal sentada num canto inferior do palco e a sombra ampliada de Jaques Morelenbaum e seu celo no canto superior oposto, unindo-se para fazerem de "Canto Triste" uma emoção para olhos e ouvidos.
Mas a estrela é mesmo Gal. Ela e sua voz. Uma voz que horas antes da estréia simplesmente pifou. Desesperado, o irmão e empresário Guto Burgos levou-a ao fonoaudiólogo. Sábia medida. Receitados alguns exercícios e duas gotas de tranquilidade, Gal pôde entrar em cena com a garganta em forma.
Algumas palavras sobre o repertório (de resto, palavras que valem para todo show da cantora): é impressionante como Gal não se importa em cantar canções não exatamente à altura de sua voz. Quem a ouve em "Não É Desgraça Ser Pobre" (fado que Matinas Suzuki Jr. descobriu para ela em Tóquio), ou em "Errática", ou ainda em "Gratitude", se sente diante de uma intérprete rara. O mesmo não se pode dizer das melôs futebolísticas do dinâmico Ben Jor ("Eu vou lhe avisar, goleiro não pode falhar...)". O repertório podia ter mais "Canto Triste" e menos os ritmos febris que predominam na metade recital do espetáculo. "É pra levantar a galera", explica uma fã. Tudo bem. Mas a voz de Gal, sem os baticuns da moda, já é o bastante para levantar dez maracanãs.

Texto Anterior: Rio comemora 30 anos de 'Deus e o Diabo'
Próximo Texto: Estrelas dão brilho à noite
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.