São Paulo, sábado, 5 de março de 1994
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A tentação conservadora

JOSÉ DIRCEU

Peça a peça, monta-se lentamente o espetáculo com que as elites dominantes do país pretendem anestesiar o eleitorado. É um estratagema conhecido, e agora o posto central no picadeiro está reservado ao ministro da Fazenda. O qual, reconheça-se, parece muito à vontade no papel.
Final melancólico para um governo nascido das lutas memoráveis do impeachment. Patético ocaso para uma coalizão que, podendo servir ao país e a seu povo, deixou-se escravizar pelas mesmas forças políticas e econômicas que elegeram Fernando Collor e o sustentaram até quando lhes foi possível.
Papel triste, o que o PSDB parece reservar para si. Evita aliar-se ao campo popular e prefere apresentar-se como o pólo reaglutinador de uma elite cuja única aspiração é o continuísmo. Esta é a medula da candidatura Fernando Henrique Cardoso à Presidência. Esta é a essência do plano econômico.
Plano? Um artifício destinado somente a remover o componente inercial da inflação, ou seja maquiá-la, pois vivemos numa sociedade indexada. Assim, logo teremos a tal inflação "baixa", a ser apresentada pelo ministro-candidato como seu principal trunfo de campanha.
Quem estiver atento notará, porém, que os preços em URV (dólar) terão sofrido uma aceleração, como já revelam as primeiras pesquisas. Aliás, entre os problemas mais graves que se colocam no caminho do ministro-candidato está a ganância de seus potenciais aliados, um empresariado que não contém a gula nem mesmo quando estão ameaçados os interesses maiores...
Bem que Fernando Henrique se esforça para evitar contratempos. Permitiu aumentos astronômicos de preços nos últimos meses e, ao amarrar o plano, sancionou o achatamento salarial. Garantiu assim aos chamados "agentes econômicos" uma margem de lucro que lhes aplaque o apetite e faça a mágica durar até as eleições. Vai funcionar?
Depois da tragédia do Cruzado (quando se lançou mão de um artifício semelhante para impedir que o povo consumasse nas urnas as vitórias conquistadas nas ruas com as Diretas-Já), é insensato crer que o cidadão consciente possa cair pela segunda vez na mesma esparrela.
Se forem mantidos os prazos de desincompatibilização, resta ao ministro-candidato pouco menos de um mês para refletir. Tempo suficiente para escapar de ser dominado por ambições ilusórias.
O dilema está posto. Fernando Henrique ainda pode deixar sua marca como o político que tornou possível a superação democrática de um período conturbado da história nacional. Mas pode também ser arrastado a uma aventura eleitoral conservadora, que representará a negação de sua biografia.
A escolha é dele.

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