São Paulo, domingo, 6 de março de 1994
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Roteiros para conhecer o mal

MURILO MARCONDES DE MOURA
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Por que foi que eu conheci aquele Menino? O senhor não conheceu, compadre meu Quelemém não conheceu, milhões de milhares de pessoas não conheceram." O leitor de "Grande Sertão: Veredas" certamente se lembrará deste trecho, no qual já se vislumbra uma ambivalência de que o livro está tão carregado. Ao lado da evidente dimensão de fatalidade, o encontro com Diadorim encerra algo de positivo, capaz de marcar a singularidade de uma experiência e a possibilidade de Riobaldo reivindicar para si o que lhe é específico: "um ainda não é um: quando ainda faz parte com todos."
Os aspectos distintivos de seu destino, que ele procura afirmar obsessivamente, nunca chegam porém a se destacar de modo pleno da "matéria vertente" do livro. A sua experiência individual permanece inextricavelmente ligada a determinações muito gerais que vêm desfazer qualquer possibilidade de uma identidade muito demarcada ou unívoca. Este é um dos centros do romance e a sua manifestação mais sensível está nas relações labirínticas entre o detalhe e o conjunto, a partir das quais a narração se constrói. O narrador, concentrado na "apontação principal" ou no que viveu com "mais pertença", se dispersa no relato das guerras jagunças, além de outras digressões, encontrando e perdendo o "norteado" do que foi a sua vida.
As tensões entre o particular e o universal são tão complexas em "Grande Sertão: Veredas" que grande parte dos trabalhos dedicados ao livro mostraram como aspectos ou episódios particulares são capazes de fazer convergir o sentido globalizante da obra. As "histórias exemplares", como a de Maria Mutema, o julgamento de Zé Bebelo, a cena do pacto; num âmbito mais reduzido: os motivos sonoros ligados a esse ou aquele personagem, a essa ou aquela ação, os sentidos latentes nos nomes dos personagens ou lugares. O grande no pequeno poderia ser a divisa da experiência de Riobaldo, que precisa mobilizar referências muito amplas e suprapessoais para estabelecer os nexos daquilo que somente ele experimentou. O resultado é que se lê o extenso romance com a atenção ao pormenor que se dispensaria ao poema mais breve e intrincado.
Kathrin Rosenfield é uma leitora indispensável de "Grande Sertão: Veredas" precisamente pela acuidade com que percorre tais diferentes registros do livro. A relação entre seus dois lançamentos sobre o romance é bastante clara. O "roteiro de leitura" detém-se didaticamente nos movimentos mais largos da narrativa de Riobaldo, dividindo-a em segmentos caracterizados por "certa unidade temática e formal"; já "Os Descaminhos do Demo" permite-se a investigação mais demorada dos momentos e motivos considerados essenciais.
No "roteiro de leitura", a autora propõe a divisão do romance em sete partes que podem ser subdivididas em duas partes de três, mediadas por um pequeno e decisivo trecho (págs. 292 a 296 da 2.ª edição). Na primeira destas partes, em que Riobaldo é ainda apenas um "seguidor", desenvolve-se uma tensão de fundo arcaico, essencial para compreender a segunda, quando ele passa a ser o chefe "Urutu Branco". Naquele primeiro momento, desenvolve-se o conflito entre o princípio da "natureza selvagem" ou "princípio hermogêneo" (do "traidor" Hermógenes) e o "princípio da cultura ordenada por leis" (do líder carismático Joca Ramiro), tal como fica visível, por exemplo, na cena do julgamento de Zé Bebelo.
Esta ambivalência, em seguida, é interpretada como desdobramento do mesmo problema, pois o princípio de Joca Ramiro revela-se também insatisfatório, posto que, igualmente unívoco, é preso ao "gozo mortífero da morte", o que se evidencia no destino imposto a seu filho(a) Diadorim com o seu "mandado de ódio". Nesta primeira parte, trata-se da questão do mal, que Riobaldo reconhece como inerente à condição humana e frente à qual procura posicionar-se. Tal posicionamento será o tema da segunda parte, quando, ao contrário de uma contraposição estéril como a de Diadorim (ódio contra ódio), Riobaldo fará o pacto com tais forças obscuras para utilizá-las em favor de um "princípio ético relevante".
Num primeiro momento, a aventura de Riobaldo pode ser sintetizada, portanto, como um processo de individuação pelo aprendizado do mal e, neste caso, "Grande Sertão: Veredas" seria um "romance de formação" peculiar: como tornar-se sujeito "nonada". A autora identifica diversos momentos em que Riobaldo aparece medusado pelo lado "crespo" do ser, lado este que constitui o fundo mais recuado de sua experiência: "a coisa mais alonjada de minha primeira meninice, que eu acho na memória, foi o ódio". Nos termos da autora, "na busca de ordem, parece ser necessário ir até o fundo da desordem".
O que poderia ser acrescentado é que a breve parte central do livro, o seu "intermezzo magmático", é um desdobramento cerrado da "Canção de Siruiz". A primeira palavra do trecho, assim como da canção, é "Urubu", e uma de suas últimas formulações, "E meu coração vem comigo", assemelha-se ao último verso da canção. Nesse sentido, a "Canção de Siruiz" é outro daqueles centros "menores" do romance, e parece contar de modo cifrado todos os desdobramentos posteriores da experiência de Riobaldo, já desde o mote: "Siruiz, cadê a moça virgem?" –referência velada a Diadorim. Dentro da abordagem da autora, tal associação seria mais do que pertinente, pois a canção, "que poderia ter sido cantada pela minha mãe", compõe, com as histórias de jagunços contadas pelo pai Selorico Mendes, uma espécie de antecipação do próprio relato do filho. Em outras palavras, a própria linguagem, instrumento pelo qual Riobaldo procura compreender-se e diferenciar-se, faz parte da reprodução "natural" da vida e está impregnada de um lastro generalizante.
O "faltar nome" aos seres e sentimentos específicos é um dos pontos de partida de Kathrin Rosenfield em "Os Descaminhos do Demo". A "confusão babilônica" da linguagem de Riobaldo corresponde à "errança" do homem no mundo decaído. O "nome" original se fragmenta "num jogo de versões infinitas", já incapaz de identificar, e em tal incapacidade consiste a "essência demoníaca" do romance. Em muitas de suas análises de detalhe, a autora explora as variações anagramáticas dos nomes, "significantes cujas significações são infinitamente demultiplicáveis". Deste modo, Siruiz também é Sirius, nome do cão de Orion –caçador mitológico expulso da floresta sagrada por seus desregramentos destrutivos, ou seja, por seu caráter "hermogêneo". Zé Bebelo, com sua aparente racionalidade está, como Hermógenes, inclinado ao "gozo mortífero" da guerra.
Os momentos mais brilhantes da capacidade interpretativa da autora referem-se à cena do pacto e encontram-se disseminados pelos diferentes ensaios do livro. Aí se esclarece como o diferenciado surge do difuso (assim como o dia da noite), como do "brejal, da confusão magmática e do amorfo" nasce um "desejo articulado". O que propicia a Riobaldo, "observador assíduo das maldades", desviar-se da "inércia maligna" é a incorporação do "princípio feminino", alheio à vida jagunça. Esta afastou de si a alteridade erótica necessária, tornando-se "virilidade incestuosa, fechada sobre si mesma na exaltação da valentia estéril e mortífera". Esta visão explica de modo convincente pelo menos um episódio importante do livro. Riobaldo, já no desenlace da batalha do Tamanduá-tão, afasta-se provisoriamente do comando para proteger aquela que ele supunha ser a noiva Otacília, perdendo a concentração para a guerra. É um autêntico esvaziamento, pela mediação feminina, do princípio destrutivo em seu clímax.
Cabe dizer, finalmente, que a diferenciação de Riobaldo está longe de ser tomada pela autora como processo consumado e apenas positivo. Ao contrário, ele é infindo porque se acha imerso no mal, do qual de alguma maneira depende, o que faz com que Riobaldo, religioso embora, rejeite as perspectivas escatológicas otimistas e proponha um saber desconfiado e sombrio.
Algo que poderá incomodar alguns leitores destes estudos sobre "Grande Sertão: Veredas" é a sua tendência alegorizante, talvez excessiva. Mas, como já se viu, as relações entre o universal e o particular acham-se tão abertas e reversíveis no romance que permitem infinitas abordagens. Além do mais, a autora apresenta um equilíbrio bastante raro entre arrojo interpretativo e análise da minúcia, amparada, basicamente, na psicanálise e no misticismo judaico.

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