São Paulo, domingo, 6 de março de 1994
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As minorias querem muito mais

MARTA SUPLICY
ESPECIAL PARA A FOLHA

O título do artigo de Nélson Ascher publicado na semana passada no caderno Mais!, "Minorias que querem demais", colocando as reivindicações atuais das feministas, dos negros e dos homossexuais, como retrógradas e tendenciosas, me deixou curiosíssima. Vamos por pontos!
Nélson cai com tudo contra o "sexual harassment" (molestamento), dizendo que "assim já não se trata de um crime cometido por um homem contra uma mulher, mas de algo perpetrado ininterruptamente por todos os homens contra todas as mulheres, incluindo-se aí toda e qualquer manifestação do desejo masculino, mesmo verbal."
É fascinante observar como uma parcela dos homens se sente engessada com o tópico do molestamento. A primeira idéia é de que provavelmente são os mais assanhados e piadistas, ou os que agem de forma aviltante, constrangendo mulheres em posição inferior a se submeterem sexualmente, que passam a ter pesadelos de serem denunciados. Puro engano. Esta turma não está nem aí: a primeira por achar "natural" o que faz, e a segunda por não poder nem pensar sobre o que faz.
São exatamente os homens que habitualmente não aprontam nenhuma dessas situações os que mais se preocupam com este problema. Seriam desejos inconscientes?
É possível, mas, mais provavelmente, deva ser algo relacionado à manutenção do poder do falo, da preservação de território disponível.
A importancia da inserção do molestamento como crime está evidente nas denúncias das últimas semanas, incluindo um chefe de vigilância de um órgão público, que tanto abusou como estuprou mulheres, e um renomado ginecologista de Brasília, que procedia da mesma forma. A possibilidade de enquadrar homens que assim se portam surge quando a sociedade passa a apoiar jurídica e moralmente a mulher ofendida. Considerar como liberalização da sexualidade a apalpação da mulher ou propostas de atos libidinosos para quem não está afim é equívoco sério. A liberalização é exatamente a mulher poder ser apalpada por quem ela deseja.
Além do que, cantadas não-constrangedoras sempre existirão e são ótimas. O que não dá é para chefe cantar subordinadas ameaçadas de perder emprego se não forem complacentes, patrões passarem a mão em empregadas domésticas, terapeutas, médicos e dentistas inescrupulosos se aproveitarem de clientes emocionalmente vulneráveis.
Não é, como diz Ascher, que "as feministas parecem propor uma ressacralização seletiva da sexualidade para que o comportamento feminino seja regido pela nova moral e o masculino julgado e condenado pela antiga." O novo milênio propõe uma igualdade sexual que, talvez daqui a décadas, leis que se referirem ao molestamento sexual não façam o menor sentido.
No momento histórico que vivemos, no qual as mulheres mal conseguiram direitos constitucionais, ainda são, na sua maioria, dependentes economicamente do homem, e a sociedade ainda é regida por valores patriarcais, é que esta proteção é um avanço fundamental. O mesmo raciocínio é válido para crianças e adolescentes. O número de crianças que sofrem abuso sexual no Brasil é grande.
Não creio que no Brasil chegaremos ao ponto de termos cartilhas como as americanas como precauções dos "pode" e "não pode", do tipo: não coloque uma criança no joelho, não dê carona a adolescente, não afague uma criança desconhecida se você está desacompanhado, não convide sobrinhos ou crianças para passar a noite em sua casa só com você. Mas a existência da discussão pela mídia, e da possibilidade de punição para este tipo de delito terá influência na incidência destes casos. Sempre haverá pessoas inescrupulosas que se aproveitarão de tal lei para forjar um molestamento. Mas não é porque pessoas burlam o imposto de renda que ele não deve existir.
Estupro
Entretanto, o ponto que mais me chocou no artigo de Ascher foi a relativização do estupro, dizendo "não causar mais dano físico à vítima que outros tipos de agressão." E que "tal gravidade decorria do valor emprestado à esfera sexual por determinadas concepções moralistas que nela situavam o âmago mesmo da "honra feminina...".
O estupro é um crime com sérias consequências emocionais – aumentadas pelo papel da virgindade até pouco tempo –mas se mantendo nos dias de hoje, pois o órgão invadido é o mesmo que na sua penetração permite a maior intimidade e prazer sexual a dois. As consequências de um estupro na vida de uma mulher podem ser indeléveis ou não, dependendo do grau de parentesco do estuprador e da perversão ocorrida.
Só quem nunca atendeu uma vítima de estupro pode ter a leviandade de afirmar que o problema é como qualquer outro de agressão. Frequentemente a vida sexual desta mulher é comprometida por anos. O estupro masculino tem a mesma seriedade psíquica, apesar de no código penal atual somente o estupro vaginal ser considerado.
Negros
Quanto aos negros, me parece justíssima esta reivindicação de quotas mínimas obrigatórias de negros em universidades e firmas. Nas universidades americanas, na década de 60, quando começou a funcionar a "quota universitária" para negros, os que não tinham notas suficientes para frequentar a universidade, em vez de serem excluídos como até então, eram matriculados, tendo que fazer cursos preparatórios para atender as exigências acadêmicas da universidade. Frequentei alguns desses cursos de literatura e língua inglesa, eu como sul-americana aprendendo inglês, eles como americanos que não falavam inglês acadêmico.
Ao contrário do que afirma Ascher, não interessa se na África os árabes ou os próprios negros já praticavam a escravatura. O fruto da produção da mão-de-obra negra na América ficou para os americanos brancos. Não é uma questão de "atribuir culpa coletiva a uma raça devido a crueldades cometidas por alguns de seus membros há mais de um século" e, sim, de tentar fazer algo que possa contribuir para dirimir as dificuldades enfrentadas pelos descendentes dos escravos.
Quanto à firmas empregarem quotas de negros, incorrerá na questão do investimento que terá que ser feito, para formação de quadros, e da reação à tal investimento. Não é algo tão simples como culpar uma sociedade branca pela ação de alguns, mas tentar levar a riqueza à mão dos mais oprimidos. Eventualmente, também para a enorme população branca miserável.
Quando as firmas americanas começaram a contratar mulheres em posição de chefia, tentando corresponder à esta reivindicação, ocorreu um problema inesperado. As mulheres que passaram a ocupar postos de poder tiveram que abdicar da maternidade e família para aguentarem a concorrência. Elas não tinham esposas em casa. Esta situação gerou o polêmico livro de Betty Friedan, "A Segunda Etapa", no qual ela defende um repensar da situação feminina.
Quanto aos homossexuais, o exemplo escolhido por Ascher, que a partir do momento no qual for provado um componente genético da homossexualidade, os homossexuais passariam a ter posição contrária ao aborto, pois este seria praticado por pais que não desejassem filhos homossexuais, me parece uma preocupação exagerada ao nível da realidade de quantos pais fariam este exame. Entretanto, existem grupos homossexuais e negros que têm se manifestado de forma absurda, como os que boicotaram um filme porque o herói, homossexual, era mau caráter. Bom-caratismo ou mau-caratismo não são privilégios de nenhum grupo. Até dá para entender que grupos que nunca tiveram voz estejam, agora com este cuidado exagerado, para se protegerem do preconceito social maciço contra eles. Outro exemplo foi dado por um grupo de negros que comeu e bebeu do melhor no Hotel Maksoud, e saiu sem pagar a conta porque "esta lhe era devida por anos de escravidão."
Estas atitudes lembram as primeiras feministas se declarando inimigas do homem: faz parte de uma posição radical que tende ao equilíbrio com a aquisição de maior respeito e poder na sociedade.
O artigo de Ascher tem o mérito de sublinhar alguns desses exageros e, portanto, apesar de perigoso equivocado em alguns aspectos, é bastante corajoso e estimulante.

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