São Paulo, domingo, 6 de março de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Derrida usa Marx para atacar neoliberalismo

SONIA GOLDFEDER
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE PARIS

Jacques Derrida pode ser considerado hoje o mais internacional dos filósofos franceses. Idolatrado nos Estados Unidos, ele passa religiosamente dois meses por ano dando conferências na Universidade de Nova York e na Universidade de Riverside, na Califórnia, intercaladas por outras palestras pelo país.
Nada simples tampouco o livro que acaba de publicar, "Spectres de Marx - l'etat de la dette, le travail du deuil et na nouvelle International" pela editora Galilée. Os americanos, de certo modo, tiveram o privilégio da primeira descoberta do livro, uma versão desenvolvida de três conferências que o filósofo da desconstrução pronunciou no ano passado, na Universidade de Riverside, sobre o tema "Para onde vai o marxismo".
Estranho, dirão muitos, para um intelectual que sempre se declarou antimarxista –e criticado por causa disso por seus pares– proceder a uma revisão dos escritos do grande teórico do comunismo. E, pasmem ainda mais, dedicar-se a salvá-lo quando todos, nesse momento, se apressam a destruí-lo. A justificativa de Derrida é clara e honesta: o que ele prega é a volta ao "espírito de Marx", para combater essa "nova ordem mundial" do mercado capitalista, que levou o mundo a uma situação insustentável. "Jamais tantos homens e mulheres foram exterminados, tão submetidos ou passaram tanta fome", ele escreve.
O livro é bastante complexo e se dirige aos iniciados em filosofia, a princípio. Mas os neófitos que quiserem se aventurar não perderão seu tempo. Manifesto político ao mesmo tempo que obra filosófica complexa, "Espectros de Marx" se insurge contra essa euforia anticomunista, que, por falta de compreensão mais sólida, ataca por extensão o próprio marxismo. "Toda referência a Marx tornou-se de algum modo maldita. Penso que há nisso uma vontade de exorcismo, de conjuração, que merecia ser analisada e merecia também que nos insurgíssemos. De uma certa meneira meu livro é um livro de insurreição" declarou o filósofo, em uma de suas raras entrevistas, a revista "Nouvel Observateur".
Mas obviamente não se trata de um retorno a Marx nos moldes ortodoxos, estalinistas, do qual, aliás, Derrida não guarda boa memória -não custa lembrar o conhecido episódio de sua prisão em Praga, em 1981, acusado pelas autoridades comunistas de tráfico de droga, quando na verdade participava de um seminário clandestino. Ele propõe, na verdade, uma triagem, como que um trabalho de luto: o que preservar, conservar e o que rejeitar? "Há poucos textos, na tradição filosófica, talvez nenhum outro, cuja lição pareça mais urgente hoje", afirma. O que não significa para ele, que devamos desculpabilizar Marx. Derrida deixa claro que o destino totalitário do marxismo, tal qual foi vivido nas sociedades comunistas, não foi um acaso, nem um acidente, mas fruto da leitura de muitos textos do filósofo alemão que caminham nesse sentido totalitário.
Acontece, porém, que há outros escritos que, paradoxalmente, protestam contra esse autoritarismo. São os textos, ou mais precisamente, seu "espírito", o espírito da crítica social que os permeia, que tem que ser preservado. Uma crítica social que seria a única capaz de nos salvar e nos dar as armas para lutar contra a ameaça do que chama "a nova ordem mundial" que está em vias de se impor no mundo. "Uma nova ordem alicerçada sob o signo do desemprego, da exclusão, da deportação dos exilados, dos apátridas, dos imigrantes, da guerra econômica entre os países, da dívida externa, das guerras interétnicas", enumera Derrida, entre outras "pragas".
Para o filósofo, esse conjunto de homens e de mulheres que sofrem constitui hoje o que chama de uma "nova Internacional", um corpo sem organização, sem doutrina, sem ideologia, mas ligado por uma "união de afinidades". "Mesmo se não acreditam mais -ou mesmo nunca acreditaram- na Internacional socialista, na ditadura do proletariado, na união do proletariado de todo o mundo, eles continuam a se inspirar em alguns espíritos de Marx ou do marxismo, para se unir, para criar um novo modo, concreto, real, crítico, do estado de direito internacional." Essa nova Internacional, segundo Derrida, já existiria de modo latente, e se oporia a "nova ordem mundial" para conquistar novos direitos, novas possibilidades, novas chances de futuro e alargar assim o espaço democrático.
"The time is out of joint" (Vivemos tempos difíceis). Derrida cita Hamlet. E para tentar superá-lo recorre a um espectro, que, para ele, ainda "ronda a Europa" –não mais espectro do comunismo, como diria Marx, mas o espectro do marxismo que "ronda" o neocapitalismo. Uma espécie de luto que não terminará jamais. Jacques Derrida propõe que façamos esse luto para não sucumbirmos definitivamente à euforia do liberalismo.
E ele não está sozinho na empreitada de recuperação desse Marx não dogmático. O filósofo Etienne Balibar, aluno e colaborador de Louis Althusser, acaba de lançar "Philosophie de Marx" pela editora La Decouverte, onde tenta estabelecer um quadro das perspectivas que se oferecem a partir do momento em que o pensamento de Marx não é mais visto nem como uma religião nem como uma ciência. Uma outra obra, densa, de Michel Vadée, "Marx, le Penseur du Possible", pela editora Méridiens Klincksieck, procura distinguir, passo a passo, o que há de libertário na teoria do filósofo alemão. Há ainda nas prateleiras das livrarias francesas o livro "La Pensée Politique de Karl Marx", de Maurice Barbier, pela editora l'Harmattan e, ainda, pela mesma editora. "Théorie Allemande et Pratique Française de la Liberté" de Solange Mercier-Rosa, ambos caminhando nesse mesmo sentido.

Texto Anterior: Obra do pintor inclui gravuras, contos e ensaio
Próximo Texto: CARPEAUX; SHAKESPEARE; NAIPAUL; FAMÍLIA MANN
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.