São Paulo, domingo, 6 de março de 1994
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Os demônios do Brasil colonial

SHEILA SCHWARTZMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

O quarto livro de Laura Mello e Souza, "Inferno Atlântico" completa um ciclo de pesquisas onde o imaginário e a cultura do Brasil Colônia são enfocados a partir do
estudo da feitiçaria e da demonologia. Antes de estudar sabás e calundus em "O Diabo e a Terra de Santa Cruz", Laura –que é professora livre-docente em História
Moderna na Universidade de São Paulo– já havia se dedicado a um trabalho de desmontagem da visão tradicional da historiografia sobre o "ciclo da mineração" em "Desclassificados do Ouro" e "Opulência e Miséria das Minas Gerais.
Nesta entrevista, a historiadora discorre sobre o caminho que percorreu para chegar a suas idéias, as influências que recebeu e os ensinamentos do historiador Fernando
Novais, a quem "Inferno Atlântico" é dedicado.

Folha - "Desclassificados do Ouro" sua tese de mestrado de 1980 (publicada em 1982) desfaz a imagem do "ciclo da mineração" como um período de maior
mobilidade social, democratização nas relações raciais e maior circulação de riquezas. Como foi possível chegar a esta nova visão?
Laura - "Desclassificados" foi muito influenciado pelo momento em que eu me formei (1975). Talvez nenhum dos meus outros trabalhos tenha sido tão marcado pelo
momento presente porque, por incrível que pareça, o que mais influenciou a concepção de "Desclassificados" foi uma pesquisa publicada pela Cúria Metropolitana -"São Paulo, Crescimento e Pobreza"- e o "milagre econômico". Enfim: o fato de vivermos uma situação extremamente contraditória, onde havia a euforia e o enriquecimento da classe média e saber que por baixo daquilo aconteciam coisas terríveis -a pobreza e essa miséria que temos hoje, que estava se gestando.
Dessa forma, pude ver as Minas, que sempre foram tidas como momento de extrema riqueza, de extrema opulência, extrema democratização das relações sociais e raciais, como mera aparência. Havia também, naquele momento, uma grande voga dos estudos de marginalidade dentro da sociologia, como os de Lúcio Kowarick e
Francisco Weffort, cujos cursos assisti e me influenciaram profundamente, assim como o curso que o Foucault deu aqui no Departamento de Filosofia, quando foi assassinado o Herzog.
Folha - Como "Desclassificados do Ouro" conduziu você a encontrar "O Diabo e a Terra de Santa Cruz" em 1986?
Laura - "Desclassificados" foi uma escolha minha. A feitiçaria foi uma sugestão do Fernando Novais, meu orientador. E coincidentemente, eu já havia encontrado alguns
casos de feitiçaria nos "Desclassificados", onde eu tinha trabalhado com as devassas eclesiásticas e com casos de feitiçaria negra no século 18. Conforme comecei a
trabalhar, em 1981, fiquei muito insatisfeita com a bibliografia existente sobre o tema. Sobre o Brasil havia apenas algumas coisas no Câmara Cascudo. A a bibliografia estrangeira não dava as respostas que eu queria. Ou eram trabalhos sobre a instituição, sobre a repressão, como o livro do Mandrou, "Magistrados e Feiticeiras
na França no século 17". Aí eu fiz um outro percurso a partir da leitura de Jacques Le Goff. "Para um novo conceito de Idade Média" e "Nascimento do Purgatório" e
também "Visão do Paraíso" de Sérgio Buarque de Hollanda. Foi a reflexão sobre o papel da Colônia no imaginário europeu que me permitiu chegar à feitiçaria.
Folha - Nessa reflexão, aprofundada em "Inferno Atlântico", você identificou a imagem a Colônia para os europeus, ao mesmo tempo como Paraíso, Inferno e Purgatório.
Laura - Como o Sérgio tinha visto o problema das visões edênicas e mostrado como os portugueses edenizavam pouco e os espanhóis edenizavam muito mais, pensei em outra chave. Existe uma visão edênica da América e do Brasil em particular, mas existe uma visão detratora, terrível, que se pode apreender nos cronistas. Então comecei a trabalhar com essa polaridade. Quando eu estava trabalhando com as feiticeiras, que são agentes de Satã, achei que era importante ver como a Colônia podia ser vista também como Inferno. E isso era muito comum na documentação sobre o degredo: os portugueses mandam e os degredados não querem vir para o Brasil porque isso aqui é um Inferno. E ao mesmo tempo eles vêm aqui para purgar as penas. Aqui é o Purgatório. Fiz a releitura do Antonil, "Inferno de negros, purgatório de brancos e paraíso de mulatos" e construí a parte introdutória do "Diabo" a partir desta tríade.
Folha - A análise que você faz sobre a feitiçaria no Brasil no "Diabo e a Terra de Santa Cruz" e sobretudo em "Inferno Atlântico" não se limita a localizar influências européias e africanas e o sincretismo delas resultante na Colônia. Ao contrário, você as encontra de novo na Europa, influenciando e criando novos amálgamas culturais. O
que a levou a esta volta?
Laura - O que me inspirou quanto a esta volta foi o fato, por exemplo, de haver no Brasil ainda hoje ritos de possessão como o candomblé e que isso prolifere nos grandes centros. Isso ajuda a ler a história da feitiçaria numa chave diferente do que os europeus fazem. Vejo aí algo americano ajudando a decifrar algo que é ocidental -o fenômeno da feitiçaria. Em congressos, por exemplo, os historiadores europeus ficavam discutindo se a feitiçaria era um crime real ou imaginário, o que para mim era o cúmulo. Uns diziam que havia práticas pagãs perseguidas pela Inquisição, outros que era delírio dos réus que, pressionados pela tortura e pelo interrogatório, inventavam histórias. Não é uma coisa nem outra. São as duas. E o que me ajuda a ver que há elementos das duas explicações é o fato de se ter hoje ritos de possessão, ter candomblé e da documentação me mostrar que o calundu do século 18 tem algo de antepassado do candomblé. No século 16, quando os europeus presenciavam ritos de
obsessão dos índios, explicavam dizendo, como fez Lery, que estes ficavam fora de si, "como as feiticeiras na Europa quando vão ao sabá".
Folha - Assim, o francês cola aos índios noções de feitiçaria européia?
Laura - Lery explicava algo que tem uma especificidade, atrás de outro fenômeno que tem outra especificidade, que para ele passa a ter a mesma especificidade. Isso é o que Certeau chamou, com grande gênio, de heterologia. Outra coisa que me instigou foram as efemérides -1492-1992-, quando escritos de franceses começaram a dizer que a descoberta da América tinha muito pouca importância para a Europa. Que 1492 mudou pouquíssimo na Europa, que ninguém estava ligando, que a vida continuava. Outros diziam que o impacto maior continuava a ser do Oriente. Fiquei irritada com isso e achei que os franceses estavam escondendo algo. O que há por trás é a necessidade da Europa afirmar sua identidade européia. Eles não podem dizer a importância inconteste que teve a descoberta da América sobre o continente europeu, porque eles são um continente acossado. Paris está em vias de se tornar uma cidade mestiça. Quem me chamou a atenção sobre isso foi o professor francês Serge Gruzinsky, historiador do México, que esteve aqui em 1991, e apontou vantagem que temos com quatro séculos de experiência interétnica, enquanto eles têm apenas alguns anos, pois o século 21 será plurirracial. Falava de uma coisa extremamente positiva que a América tem a ensinar para a Europa. Todas essas coisas me ensinaram a pensar o que vem e o que volta, e esse trabalho é sobretudo para mostrar esse movimento.
Folha - Por que durante os séculos 16, 17 e 18 são reportadas tantas manifestações do diabo no Brasil?
Laura - Primeiro porque o diabo tinha um papel no cotidiano muito maior e diferente do que hoje. Mesmo a especulação científica e filosófica se reportava ao diabo. A demonologia era uma forma de conhecimento no Renascimento. É importante também para o surgimento de uma forma de investigação científica que é o empirismo, já que a demonologia discute a acusação dos fenômenos: o que é o não causado pelo demônio. A geada é natural ou sobrenatural? É uma discussão científica, não como concebemos hoje, mas como se concebia no século 16. A presença do demônio era
constante, não só no nível erudito, mas no nível popular, pois as pessoas atribuíam uma série de fenômenos à presença do demônio: aquilo que chamamos hoje de "outro" era nomeado naquela época como os atributos do demônio. No século 19, procuro mostrar no livro como o outro que tememos, que está dentro de nós, num
golpe de gênio de um poeta que é o Bernardo Guimarães, vai se colorindo com as cores do sabá e do inferno. Guimarães não acreditava no sabá, nem nos demônios, ele
estava discutindo sobre o eu profundo, a quebra dos tabus, o medo do incesto, e aí ele vai usar as cores do inferno. É nessa grande migração da crença no diabo e no temor do outro como diabo, até o temor do eu como um outro, que eu coloco as cores do diabo. Assim, com a descoberta da América, a dificuldade de compreensão é óbvia, e a demonização é um mecanismo quase automático. Desde a natureza até os homens.
Folha - Nesta tentativa de compreensão do outro, você mostra como os jesuítas foram "representantes máximos da incompreensão do universo colonial" ao mesmo tempo em que produziam conhecimento sobre os povos que catequizavam. Como então analisar o seu papel?
Laura - Os jesuítas demonizam e tentam compreender. Parece que vão por aproximações sucessivas, lançando os elementos de um olhar etnológico, gerando um movimento de incompreensão fatal, com a maior boa-fé. Eles não são apenas movidos pela sanha catequista, pois no bojo disto há um impulso sincero de curiosidade e compreensão que é quase impossível, pois o limite é colocado pela cultura. Apesar disso, é através dos jesuítas que são lançados os germes de uma outra visão sobre os homens. Eles registram, distorcem, divulgam uma determinada realidade desconhecida e permitem por exemplo, que essa realidade penetre na Itália, como mostro em capítulo do meu livro (sobre Giovanni Botero). Issou permitiu que essa fosse divulgada entre os meios intelectuais do Renascimento Italiano e que a percepção do outro se
fizesse pelas vias mais indiretas porque, na verdade, os jesuítas vieram para catequizar. Ao mesmo tempo em que catequizam, e portanto acabam destruindo a cultura com a qual estão em contato, eles registram.

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