São Paulo, segunda-feira, 7 de março de 1994
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Da URV ao real

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

A URV, como se sabe, é um mecanismo de transição, uma espécie de protótipo de uma nova moeda. É sob este ponto de vista que pretendo tratar o assunto.
Chama a atenção, em primeiro lugar, o caráter ainda ambivalente do programa FHC. O seu ponto de chegada continua em grande medida indeterminado. O governo não decidiu, ou não quer por enquanto explicitar, os contornos precisos da etapa crucial do programa: a reforma monetária propriamente dita.
Pode ser que tudo acabe em um esquema de dolarização à moda argentina, como propôs o deputado Roberto Campos em artigo publicado semana passada nesta página. Outro desfecho possível é uma dolarização meia-sola, isto é, um esquema menos rígido do que o plano Cavallo ou que o "currency board" das colônias inglesas, mas que incorpore elementos essenciais desse modelo (âncora cambial, conversibilidade ampla, regras de emissão baseadas nas reservas internacionais do Banco Central etc.).
No entanto, a URV nasce com algumas características que parecem apontar para uma solução diferente, mais condizente com a situação brasileira. O decreto presidencial que dispõe sobre a metodologia de cálculo da URV estabelece uma referência interna para o novo indexador, cuja variação se situará no intervalo entre o aumento máximo e mínimo de três índices de preços amplamente utilizados no país.
Consistentemente, o cálculo retrospectivo da URV toma por base a média desses três índices e não a taxa de câmbio com o dólar, como vinha sendo divulgado pela imprensa.
Houve, portanto, a preocupação de definir uma regra clara para a formação da taxa CR$/URV, o que pode estimular a utilização voluntária do novo indexador. Desse ponto de vista, há um progresso em relação ao que foi anunciado em dezembro último, quando o governo se limitou a afirmar que a URV seguiria um conjunto não-especificado de indicadores e informações já utilizado para determinar a variação do dólar. Isso teria deixado a URV ao arbítrio do Banco Central e alimentado a percepção de que a sua verdadeira "âncora" seria a vinculação à moeda estrangeira.
Além disso, a medida provisória que criou a URV torna nulos de pleno direito os contratos indexados à variação cambial, exceto quando autorizados por lei federal, o que resolve, aparentemente, a controvérsia jurídica sobre o assunto (pelo menos no que diz respeito a contratos novos) e reforça a proteção à moeda de curso legal.
A existência de uma regra interna para a URV, combinada com o fato de que a medida provisória não fixa a sua paridade com o dólar, abre caminho para que o Banco Central opere o câmbio de forma a produzir flutuações moderadas na taxa URV/dólar, prefigurando um regime cambial flexível na terceira e última etapa do programa.
Se surgirem dúvidas quanto à confiabilidade ou adequação da metodologia estabelecida para a URV, haveria a possibilidade, facultada pela medida provisória, de contratar institutos de pesquisa de preços para monitorar o indexador e eventualmente aprovar ou sugerir modificações no seu método de cálculo. Se isto for feito de forma clara e transparente, de acordo com procedimentos e critérios preestabelecidos, aumentará a aceitação da URV, independentemente de qualquer relação estreita com a taxa de câmbio.
Evidentemente, nada disso resolve um problema fundamental: como garantir a confiabilidade da moeda que se criará na terceira fase do programa? Esse problema não se resolve apenas com ajuste fiscal e medidas de desindexação. É preciso também oferecer algum tipo de garantia no campo estritamente monetário.
Essa garantia poderá tomar a forma de uma vinculação ou subordinação ao dólar, o que significaria transformar o Banco Central do Brasil em uma espécie de filial do Federal Reserve dos EUA. Não é por acaso que esta proposta agrada ao deputado Roberto Campos.
Nessa hipótese, e sobretudo no caso de uma dolarização mais rígida, estaríamos diante de um programa capaz de trazer dividendos de curto prazo, mas que deixaria sequelas graves para o país no médio e longo prazos. Sequelas talvez mais graves do que as dos programas de estabilização lançados no Brasil nos últimos anos.
Mas há alternativas. Nas circunstâncias atuais, a mais praticável talvez seja uma reforma do Banco Central que o torne mais autônomo em relação ao governo e ao sistema financeiro público e privado, habilitando-o a defender a estabilidade do padrão monetário que se pretende criar. Uma nova moeda poderia vir junto com um Banco Central renovado, possivelmente com base em um estatuto provisório que vigorasse por prazo estabelecido em lei até a reforma definitiva do sistema monetário-financeiro.
A reestruturação do órgão emissor, combinada com faixas de variação amplas para agregados monetários ou a taxa de câmbio, poderia ser uma forma de contribuir para a sustentação da nova moeda. Nesse contexto, o Banco Central utilizaria o trunfo representado pelo nível atual das suas reservas internacionais para estabilizar a taxa de câmbio nominal, sem assumir compromissos inflexíveis como a fixação, prefixação ou a definição de faixas estreitas para o câmbio nominal.
Naturalmente, o caminho da reforma institucional exige mais do governo, do Congresso e da sociedade brasileira do que a mera definição de regras de vinculação a uma moeda estrangeira. Seria necessária uma cuidadosa discussão pública das alternativas de reforma do aparato legal e institucional na área monetária.
Haverá tempo para isso? A noção de tempo é sempre relativa e depende de vontade política. Ainda há condições de conferir à reforma monetária um conteúdo compatível com a situação atual do país e com as condições estruturais e a dimensão da economia brasileira, promovendo a estabilidade sem cair nas armadilhas da dolarização.

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