São Paulo, quarta-feira, 9 de março de 1994
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Mercosul, democracia e realismo

JOSÉ ARTUR DENOT MEDEIROS

O Mercosul já ultrapassou o que poderia ser chamado de sua fase heróica: o tempo das decisões seminais, das grandes definições conceituais, da passagem dos ideais abstratos para a práxis econômica. Desde a assinatura do Tratado de Assunção, em 26/3/1991, Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai lograram avanços em tantas áreas diferentes que, muitas vezes, parece difícil acreditar que tanto foi consegudido em tão pouco tempo. Ainda resta –é claro– muito por fazer, porém se pode afirmar sem temor que o mais importante já foi concretizado. Estamos, neste exato momento, muito mais numa fase de sintonia fina e de acabamento do edifício, do que num período de construção de alicerces.
Ao longo desses últimos meses, o processo integracionista foi ganhando dinâmica própria, que continuará a exigir decisões políticas difíceis. Nessas horas, arroubos idealistas, por mais bem intencionados, têm de ceder passo a uma ótica mais rigorosa: a ótica do realismo e do interesse nacional.
No caso do Mercosul uma coisa é certa: bastaria seu êxito comercial para justificá-lo e para estimular sonhos ainda mais ambiciosos sobre o futuro da integração. O comércio intraMercosul saltou de US$ 3,6 bilhões, em 1990, para US$ 8 bilhões, em 1993; e o volume de transações continua a crescer dia após dia. Mas a iniciativa é muito mais do que um projeto meramente econômico-comercial: a superação definitiva da rivalidade regional; a consolidação de nossas democracias (a democracia é, a um tempo, a raiz e o fermento da integração); o motor da "coopeação por decisão", que substituiu o da "cooperação por necessidade"; a crescente participação da sociedade civil no processo; a melhoria da competitividade de nossas economias "vis-à-vis" a concorrência internacional, entre outros. Todos esses são elementos que demonstram que o Mercosul já sinaliza a conformação de uma área econômica, social e culturalmente integrada.
Maturidade, transparência e realismo têm sido os pilares essenciais da política brasileira no Mercosul.
Hoje sabemos que o futuro das relações econômicas está na globalização dos mercados. A regionalização é etapa necessária desse enredo. O êxito, até aqui, do Mercosul é uma indicação segura de que a criação de uma Área de Livre Comércio Sul-Americana (ALCSA) e mesmo de uma Integração Hemisférica, unindo as três Américas, nada têm de fantasioso.
O dia 1º de janeiro de 1995 é uma data-chave para o Mercosul. Marcará a finalização de uma zona de livre comércio completa e o início da etapa seguinte: uma união aduaneira, alicerçada em uma Tarifa Externa Comum (TEC), que abrangerá a imensa maioria dos produtos importados pelos países membros de fora do Mercado Comum. Até o momento, já foi negociada a TEC de cerca de 85% dos produtos. Conforme pactado na 5ª Reunião do Conselho Mercado Comum, em Colônia, Uruguai, a 17/1/1994, o restante da TEC será negociado até junho deste ano. Um cronograma de negociações foi estabelecido para definir-se a TEC para os setores ainda não acordados: bens de capital, informática e produtos da área de telecomunicações. As dificuldades de negociação existentes são naturais e certamente superáveis quando há, entre os governos dos países membros do Mercosul, vontade política de aproximar posições em bemefício comum.
Os desafios até 1995 são enormes: além de definir, até junho deste ano, a TEC, no segundo semestre de 1994, deveremos também negociar a natureza e a estrutura das instituições permanenttes do Mercosul para o período posterior a 1995.
Este balanço sucinto serve para fundamentar duas constatações. Primeiro: os resultados do Mercosul são excepcionais. Se não foram maiores, até aqui, é porque as relações entre países respeitam a lógica da razão do Estado: nenhum país deixa de fazer aquilo que percebe como de seu interesse e vontade nacionais. Segundo: o avanço do processo de integração tem sido permeado pelos conceitos de legitimidade (no caso brasileiro, lastreado na própria Constituição de um Estado democrático), de oportunidade histórica e, repito, de realismo (cujo exemplo mais significativo foram os resultados da reunião presidencial de Colônia, acima mencionada).
Assim, são simplesmente infundadas as críticas localizadas de que os resultados do Mercosul estão aquém do esperado ou de que o governo tem conduzido o processo de forma autoritária. As primeiras não resistem a um exame imparcial do que já foi realizado: crescimento exponencial do comércio; arranque sem precedentes na harmonização de legislações; convergência progressiva de padrões qualitativos; maior fluidez no controle alfandegário; melhor normatização técnica; melhoria das ligações físicas; desregulamentação e harmonização de normas para o livre trânsito regional; avanços da convergência nas áreas agrícolas; mais de 200 empresas operando no Brasil e na Argentina e estimuladas pelas vantagens criadas.
A crítica de "autoritarismo estatal", por seu turno, é também improcedente: nesses últimos anos, foram promovidos um grande número de seminários e de encontros entre governo, entidades patronais e sindicais e representantes da Academia, nos principais Estados da federação, nos quais sempre reinou total franqueza e transparência sobre os rumos da iniciativa. A Comissão Parlamentar Conjunta do Mercosul tem criado condições para maior sintonia entre o Executivo e o Legislativo. Uma participação ainda mais ativa do Legislativo no processo integracionista poderá trazer grandes contribuições para seu desenvolvimento futuro.
O Mercosul nasceu, claramente, da iniciativa política dos governos. Mas, na verdade, o fortalecimento de sua dinâmica econômica, além de reforçar o próprio domínio do político, chega, hoje, mesmo a superá-lo. Neste ponto, é fundamental destacar a sinalização inequívoca que o empresariado tem recebido das esferas públicas dos quatro países sobre a irreversibilidade da iniciativa. As vozes contrárias são nitidamente minoritárias e seus interesses facilmente identificáveis.
Evidentemente, ainda há muito espaço para tentar-se uma maior conscientização da sociedade brasileira sobre o Mercosul, suas realizações, suas dificuldades naturais, seu futuro. Este tem sido um esforço permanente. Para tanto, o Itamaraty estará realizando, nos próximos meses, com recursos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (em fase final de negociação), seminários sobre o processo de integração em praticamente todos os Estados do Brasil. A par disso, se estão ultimando estudos, no Itamaraty, para a criação de um Fórum Nacional do Mercosul, instância em que se asseguraria uma sintonia ainda mais perfeita entre sociedade e governo.
O Mercosul vai-se afirmando como uma das mais importantes iniciativas diplomáticas deste final de século. O Brasil encontra no Mercosul um instrumento vital para uma inserção mais eficiente e moderna na economia internacional e para desvencilhar-se dos resíduos de um protecionismo ultrapassado, incompatível com as novas realidades do mundo contemporâneo. É compreensível, assim, que um projeto dessa profundidade continue a despertar opiniões apaixonadas e frequentemente antagônicas. Ninguém, contudo, poderá negar ao Mercosul, em sã consciência, vitalidade e importância política e econômica para o futuro do país.

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