São Paulo, quarta-feira, 9 de março de 1994
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Ira via amor com inteligência e humor

RUY CASTRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"The Complete Lyrics of Ira Gershwin", um livraço recém-lançado em Nova York contendo mais de 700 letras do fabuloso irmão mais velho de George Gershwin, provoca mais uma vez a pergunta: O que terá acontecido à música popular americana? como foi possível que essa mesma música tivesse abandonado a insuperável tradição de beleza, inteligência e sofisticação que caracterizou as suas canções até 1965, em favor de um estilo, como o das últimas décadas, que é justamente o contrário de tudo isso? Ou seja, feio, burro e grosseiro.
Ou, em outras palavras, por que os americanos já não parecem capazes de produzir canções de fascínio adulto e duradouro como "Embraceable You" (1930), "I Can't Get Started" (1935) e "The Man That Got Away" (1954), para citar apenas três canções de diferentes compositores (respectivamente George Gershwin, Vernon Duke e Harold Arlen) que tiveram letras deslumbrantes de Ira Gershwin? Estas são tocadas até hoje, mas quem se lembra de canção que ganhou o Oscar ano passado?
Robert Kimball, o organizador de "The Complete Lyrics of Ira Gershwin", conta um fato que, hoje, seria impossível de acontecer, mas que pode explicar a riqueza melódica e lírica daquela época. Na semana de Natal de 1927, nada menos que vinte musicais estrearam na Broadway –onze só na noite de 28 de dezembro. E que musicais! O principal deles era "Show Boat", de Jerome Kern e Oscar Hammerstein 2º, mas dos outros também saíram canções que estão até hoje no ar. Naquela mesma semana, enfrentando a canina concorrência, George e Ira Gerswin tinham três novos musicais em cartaz: "Rosalie", "Oh, Kay!" e "Funny Face", Três sucessos.
Para nós, brasileiros, quase 70 anos depois, isso pode não dizer muito. Ninguém por aqui viu esses musicais e seus libretos não eram exatamente Shakespeare. Mas as canções que George e Ira fizeram para eles e que foram gravadas por todo mundo– veja essas amostras. De "Rosalie", saiu "Oh Gee! Oh Joy!". De "Oh, Kay!", saíram "Maybe", "Clap yo' Hands", "Do, do, do" e "Someone to Watch Over Me". E, de "Funny Face", saíram "S Wonderful", "He Loves and She Loves", "My One and Only", "How Long Has This Been Going On" e "Funny Face". Dez pequenas obras-primas que escaparam ao destino de tantas canções escritas para a Broadway –morrer junto com as peças– e que preferiram optar pela eternidade.
George tinha 29 anos naquele Natal de 1927, Ira 31. Os dois eram a dupla de compositores mais solicitada da Broaway, numa época em que todos os pianos e canetas estavam em mãos talentosas ou geniais. Mas sua produção era tão escandalosamente exuberante que eles podiam dar-se ao luxo de engavetar uma canção que haviam escrito em 1924 e de que gostavam muito, mas que não conseguiam encaixar em nenhum "score" –e que acabou ressuscitando por mero acaso em Londres, anos depois. Sabe qual? "The Man I Love".
Enquanto a música popular americana foi esse milagre, Ira Gershwin praticou-o com uma constância inacreditável, quase diária. E olhe que os outros letristas, seus concorrentes diretos, eram Lorenz Hart, "Yip" Harburg, Johnny Mercer, Oscar Hammerstein 2º, Howard Dietz, Alan Jay Lerner, Sammy Cahn, Ralph Blane, Dorothy Fields –todos de formação literária ou acadêmica, craques em metrificar (outra arte perdida), conhecedores de história, poesia, artes plásticas, e com uma rara capacidade para falar com inteligência, ternura e humor da relação homem/mulher. Para não citar os dublês de compositor e letrista, como Cole Porter, Irving Berlin, Frank Loesser e Hoagy Carmichael. Nenhuma outra música popular no século teve uma geração tão brilhante.
Daí a alguns anos, os Gershwins foram para Hollywood, a fim de fazer o que intimamente desprezavam: escrever canções para filmes. Mas, mesmo que quisessem, não conseguiriam fazer nada "menor". Num único ano, 1937, eles compuseram "They Can't Take That Away From Me", "Let's Call the Whole Thing Off", "A Foggy Day", "Nice Work if You Can Get it", "They All Laughed", "Love Walked In"'e "Love Is Here to Stay"', –e essas são apenas as que ficaram universalmente conhecidas.
Infelizmente, 1937 seria também o último ano de George, porque ele morreria em julho, de um tumor cerebral, aos 38 anos.
Nem a morte fez parar de crescer a música dos Gershwin. Com o tempo, o sucesso popular das canções de George acabou superando até o de Irving Berlin, e seu sucesso "de estima" (junto aos críticos e intelectuais) rivaliza com o de Cole Porter. Metade de tudo isso, George ficou devendo a Ira. Este não apenas segurou a tocha do irmão, protegendo e promovendo a sua música, como juntou-se a outros compositores e continuou produzindo maravilhas. Com Kurt Weill (cujo vodu "dark" Ira, milagrosamente, conseguiu espanar), fez "My Ship" e "The Saga of Jonny". Com Jerome Kern, fez "Long Ago (and Far Away)". Com Burton Lane, "It Happens Ev'ry Time". Com Harold Arlen, todo o "score" do filme "Nasce uma Estrela".
O que se faz com um livro de letras que dependem da melodia para sua mais completa fruição? Letra de música não é exatamente poesia, embora talvez seja a sua prima rica. Está mais próxima do "light verse", de que há grandes representantes neste século, como Ogden Nash, Dorothy Parker, Philip Larkin. E, tal como o "light verse", letras de música são intraduzíveis, o que algumas recentes tentativas em português só vieram provar. Mas há poucos prazeres maiores que o de ler as letras de um homem sensível, erudito e deliciosamente moleque como Ira Gershwin, mesmo que não se conheça a música por trás delas. Elas parecem ter música própria.
Ira morreu a 17 de agosto de 1983, lúcido e ativo aos 86 anos. Ainda a tempo de constatar que sua obra, a de seu irmão e a de seus extraordinários colegas de turma sobreviverão a eles e, provavelmente, a todos nós.

Título: The Complete Lyrics of Ira Gershwin
Organizador: Robert Kimball
Quanto: US$ 45, 414 págs.

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