São Paulo, domingo, 13 de março de 1994
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"A arte contemporânea é redundante"

RÉGIS BONVICINO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A seguir, trechos de um depoimento exclusivo da artista plástica Regina Silveira à Folha, em que ela comenta sua exposição em Washington, fala sobre a repercussão da arte brasileira nos EUA e a preocupação de engajamento dos artistas norte-americanos.

Dilatáveis
"Dilatáveis" consistem num conjunto de obras que é uma nova versão da série "Dilatáveis" que eu fiz em 1981, com imagens fotográficas de militares, de tanques de guerra, de jogadores de futebol etc. Essas imagens, embora pequenas, projetavam propositadamente sombras enormes. Eu quis, na época e agora também, discutir uma idéia de poder.
Essas imagens feitas em 1981 eram efêmeras porque as heliografias desaparecem com o tempo. Os originais heliográficos estavam ficando danificados. Eu resolvi então transformá-los em peças únicas, pintadas e serigrafadas em lonas. Às imagens de tanques, de militares, de jogadores do futebol, acrescentei a de uma mesa com executivos, uma discussão, um encontro de executivos que projeta uma sombra como se a imagem fosse a de uma grande flor ou de uma escova.

Política
A preocupação política aparece de muitas formas e maneiras no meu trabalho. É mais explícita quando opero com imagens de executivos e com imagens de tanques de guerra projetando sombras de tesouras, de revólveres etc. Mas, por vezes, ela é mais subliminar, quando, por exemplo, trabalho com peças do mobiliário, com mesas e cadeiras reperspectivadas, com xícaras distorcidas. A arte politicamente engajada está "in", especialmente nos Estados Unidos e no Canadá. Está também bastante presente a questão do politicamente correto. Mas meu envolvimento é diferente. Acho que minha abordagem se dá dentro de um plano fenomenológico, por meio de modos de percepção e não por meio de temas.
Criando nuances você pode tentar modificar as coisas. Mas minha postura é diversa das posturas atuais do politicamente correto, no sentido que não explora certos tópicos que estão na moda como identidade, gênero etc. Um certo refinamento deve afastar o óbvio. Alguma sutileza, nos trabalhos, pode permitir que eles tenham uma leitura mais estendida no tempo.

Início e meio
Eu sempre fui uma artista que se moveu dentro de uns conteúdos que foram classificados de "expressionistas". Comecei fazendo figurações ligadas às minhas vivências de funcionária de um hospital psiquiátrico de Porto Alegre. Na segunda metade dos anos 60, namorei a abstração expressionista e, finalmente, já nos 70, iniciei a busca do construtivo, do rigor, da geometria, da geometria organizando a figuração. Esta espécie de paradoxo, ser ao mesmo tempo geométrico e expressionista, marca meu trabalho. Eu uso o próprio da geometria especialmente nas instalações.
Mas a geometria serve para criar paradoxos visuais e confrontos entre os espaços de percepção e os espaços construídos. Nesses paradoxos e confrontos, podem surgir espaços qualitativos, onde as coisas não têm pontos de vista fixos, são espaços sem "perspectiva", com características de espaços de percepção. A perspectiva e a geometria são instrumentos fortes no meu trabalho mas também instrumentos irônicos. A geometria é, muitas vezes, inventada e, ao mesmo tempo, não é séria no sentido de que não foi utilizada para produzir coisas que tenham veracidade. Ela é usada para permitir uma entrada no terreno das fantasias.

Marcel Duchamp
A questão da anti-arte aparece, com clareza, nas séries que intitulei "in absentia", onde eu trabalho com a idéia de coleções de arte ausentes. Nessas séries, me valho de imagens e conceitos dos ready-mades de Duchamp. Eu opero com os ready-mades históricos, os que formam um paradigma dentro da modernidade. Por exemplo, na Bienal de São Paulo de 1983, eu montei uma instalação: um pedestal para suportar um objeto, sem o objeto, com a sombra da silhueta da roda de bicicleta de Duchamp em cima de um banquinho pintados na parede. "Bicycle Wheel", de Duchamp, é de 1913. Fiz isto também com o "Bottlerack", que é de 1914. Estes não objetos produziam sombras enormes e deformadas. Trabalhei também com as "sombras" de alguns trabalhos de Man Ray e e Meret Oppenheim. Como resultado destas operações, estes objetos aparecem como uma coleção de arte ausente.

Dilatáveis 2
Os "Dilatáveis" são uma reflexão sobre a imagem "midiatizada", a imagem que pode ser identificada na realidade. As sombras são índices que apontam com muita força para seus referentes. Todo o meu trabalho e não somente os "Dilatáveis" parte da imagem fotográfica e do antidesign.
A nova crítica de arquitetura abate as questões dos espaços escuros, das distorções de espaço. E isto me interessa. É um diálogo também com os perspectivistas do Renascimento. No percurso do meu trabalho transformei distorções lineares das figuras em silhuetas. Os "Dilatáveis" projetam silhuetas. É um uso fantasioso da perspectiva. Olhar e perceber espaços, procurar imagens no espaço. Esta tem sido a tônica do que fiz nestes últimos 15 anos. As relações que se dão no mundo urbano, fundamento fotográfico, a marca indicial, essas são as características que me definem.

Cena cultural brasileira
Eu acho que ela é muito viva, com uma produção de qualidade, de modo geral, e as artes plásticas em particular. A produção brasileira é vista, hoje, nos Estados Unidos e na Europa, como uma coisa diferenciada de seu contexto latino-americano. É vista como produção refinada, de alta qualidade. Na verdade, você pode escolher o pior e o melhor aqui.

Bienal
A Bienal de São Paulo é uma das poucas janelas para fora que se tem neste país. A Bienal sempre foi importante, mesmo quando não expunha o mais significativo ou representativo. Ela talvez seja hoje considerada a segunda bienal do mundo em importância. A Bienal é, realmente, um momento de diálogo, de aprendizagem, de quebra da nossa tendência ao isolamento.
Eu espero que a seleção feita para a próxima Bienal (artistas nacionais) mostre uma boa produção. Não conheço a maioria dos nomes. Mas acho, por exemplo, que o Iberê Camargo deveria ter uma sala especial, com curadoria específica, que pudesse organizar uma visualidade própria desse mestre. Pelo que estou vendo –com exceção do Iberê Camargo– a parte internacional talvez vá ser mais interessante do que a nacional. A seleção feita para a Bienal –artistas brasileiros– não incluiu a questão da multimídia. Será que as novas tecnologias estão no olvido? A arte multimídia não está ainda constituída aqui. Ela é cara. E ideologicamente contrária ao mercado de arte.

Produção contemporânea
Eu representaria a produção contemporânea como uma paisagem sem picos. Ela é redundante, fragmentária, não se organiza em tópicos. E esta é uma questão da própria modernidade. A produção –de um modo geral– se dá de uma forma fluida. Você tem artistas de grande qualidade, com o Richard Serra ou o Frank Stella ou um Leon Ferrari, na Argentina, mas existe muita paisagem para poucos picos.

Vodca Absolut
Você conhece a vodca Absolut? É uma marca de vodca que convida artistas do mundo todo para fazer seus anúncios. Andy Warhol foi um dos primeiros. E depois muitos outros ligados à pop art e ao expressionismo abstrato e, depois, ainda, gente de todo o planeta. Então a companhia quis fazer a Absolut latina. Convidou um artista de cada país. Eu fui convidada na condição de artista brasileira. Aí eu fiz um desenhão. Me empenhei muito. E acho que o anúncio ficou legal. Era uma sombra distorcida da garrafa. Uma sombra fálica. Mas quando eu mostrei o lay-out, em Nova York, para a encarregada, na companhia, ela me perguntou: "Mas porque isso aqui é brasileiro?" A encarregada era uma colombiana. Respondi: "Só pelo fato de eu ser brasileira." O trabalho foi recusado. E, então, ela me mostrou os dos outros latinos.
Nestes trabalhos havia alusões a lendas indígenas, a temas estereotipados. Talvez esperassem que eu fizesse uma sombra de Carmem Miranda ou do Pão de Açúcar. Alguma coisa "absolut" Brasil! (Régis Bonvicino)

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