São Paulo, domingo, 13 de março de 1994
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Reparação não é privilégio

FERNANDO CONCEIÇÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Uma vez contestei na Folha um artigo de Zélia Gattai sobre a reforma do Pelourinho, em Salvador, e da Bahia enviaram ao "Painel do Leitor" algumas cartas desaforadas. Lembro de uma em que o missivista indignado perguntava ao editor como o jornal permitia que um "caloteiro" (no caso, o escrevinhador destas linhas) ocupasse um espaço nobre na seção "Tendências e Debates" para replicar intelectuais do naipe de Zélia. Para comprovar sua acusação, o defensor do estilo político-grotesco do governador Antônio Carlos Magalhães (porque meu artigo apresentava o lado autocrático da administração carlista na Bahia) citava trechos de uma reportagem da própria Folha, sobre o ato simbólico realizado por um grupo de profissionais liberais e universitários negros, entre os quais me incluí, num restaurantes do hotel Maksoud Plaza, em novembro.
Comemos lagosta e bebemos champagne francês, ao custo aproximado de US$ 700. E nos recusamos a pagar a conta, sob a alegação de que as despesas corriam pelo crédito que todos os descendentes de africanos escravizados têm diante da sociedade e do Estado brasileiro. Esse crédito totaliza mais de US$ 6 trilhões, o que cabe para cada um dos 60 milhões de descendentes de escravos no Brasil algo em torno de US$ 102 mil.
ao contrário do que diz Nelson Ascher no Mais! (27/02/94), isto não é querer demais. Espero que nenhum leitor tome como petulância minha refutação ao articulista da Folha. Mas como o artigo de Ascher levantou alguns pontos pertinentes sobre a justeza ou não de uma indenização devida pelos Estados beneficiados com o regime escravista a essa massa de negros que perambula mundo afora, aceito o desafio da réplica.
Que desde já se saiba: não é esta a primeira vez que me ponho na empreitada de contestar aspectos das argumentações supostamente sérias de Nelson Ascher. Há cerca de dois anos, nas páginas do "Jornal da USP" (onde trabalhávamos) ele acusou de intolerância um grupo de negros do Harlem, que reagiu com violência ao atropelamento de uma criança negra por um judeu rico de Nova York.
O judeu fugiu sem prestar socorro à criança, que veio a morrer. Os negros atacaram outros judeus. Para Ascher, que é descendente de judeus, esses negros agiam como fascistas. Nada mencionava sobre a covardia de alguém que atropela uma criança e foge do local do acidente sem prestar socorro. Fui obrigado a replicar.
Foi a partir dessa leitura, inclusive, que outro articulista da Folha, Marcelo Coelho, publicou o primeiro artigo atacando o MPR, logo depois do almoço no Maksoud Plaza. Ali se afirmava, de forma mais ousada que a timidez de Ascher, que ações de protesto daquela natureza levariam ao acirramento do racismo no Brasil!
Hughes quis desvalorizar as discussões propostas por intelectuais militantes negros como Leonard Jeffries e líderes muçulmanos negros, como Louis Farrakhan. A abordagem de Hughes está limitada à sua experiência de imigrante australiano na democracia norte-americana. Ascher e Coelho tentam transplantar, in totum, para um país cujo nível de modernização das instituições públicas permanece abaixo da média, aquela elaboração teórica –apropriada ao modus vivendi estadunidense.
Ao falar dos negros nos EUA estamos falando de uma minoria quantitativa. Eles formam apenas 12% da população, enquanto no Brasil os desendentes de africanos são pelo menos 40% –incluídos negros e mestiços de negros de vários quadrames. Por essa visão estratificada pela etnia, os negros compõem, enquanto grupo, uma maioria numérica. Sua expressão minoritária se dá na discussão do seu poder aquisitivo, isto é, como maioria marginalizada do processo de auferimento dos bens gerados pela produção capitalista.
Desde já pecam os intelectuais que colocam no mesmo balaio de gatos das supostas "minorias", negros, feministas e homossexuais. Ser feminista, "verde" ou homossxual requer uma tomada de posição consciente, uma escolha em função dos meus desejos. Entretanto, e isto é o óbvio ululante, ninguém opta por ser ou não negro. Se é. E em razão dessa condição, diante das consequências sociais daí advindas (como o racismo e o preconceito) ser negro para muitos é uma fatalidade.
Poderia se dizer o mesmo sobre sua gente –que também está dentro do referido balaio, junto com negros e homossexuais, a notar nos programas dos neonazistas recentemente divulgados em dossiê da Universidade de Tel Aviv.
Ascher "esquece" de mencionar que a exigência de indenização agora por parte dos descendentes de africanos escravizados tem precedentes históricos até entre seu povo. A construção e manutenção do Estado de Israel é exemplo clássico de indenização paga pelos que infligiram sofrimento à sua gente. Até hoje a Alemanha indeniza os judeus. Do mesmo modo fizeram os EUA com os descendentes de japoneses confinados em campos de concentração durante a segunda guerra mundial: estão indenizando-os com US$ 20 mil individuais. Diversos outros exemplos poderiam ser citados, mas preciso refutar outros pontos apresentados pelo articulista.
Um desses pontos é o de que, antes dos europeus usarem da empresa da escravidão, na África negros e árabes já escravizavam negros. Ascher afirma que, para o êxito do tráfico negreiro, "se havia brancos corruptores, havia também negros corruptos", que capturavam outros negros para entregá-los aos traficantes europeus. Ascher poderia ampliar a discussão e dizer que, a partir da instituição da propriedade privada, como estabelecem Veblen, Engels ou L.H. Morgan, toda formação social de grande parte das sociedades antigas utilizou da mão de obra escrava –na África, na Europa, na Ásia, na Austrália e na América pré-colombiana.
Portanto é de um simplismo atroz justificar os malefícios do tráfico negreiro como fruto de colaboracionismo das suas vítimas. Sabe Ascher, tanto quanto eu, que mesmo entre os judeus sempre existiram os anti-semitas, que jogam para o outro time. Esta constatação, entretanto, não retira o valor dos que combatem o anti-semitismo como uma chaga, da mesma forma como o foi a escravidão dos africanos no Brasil e no mundo.
Reparar os danos perpetrados contra os nossos ancestrais, sejamos negros ou judeus, não é exigir privilégios. Os países que sequestraram do continente africano entre 20 milhões a 200 milhões de pessoas, nos 400 anos de tráfico, têm uma dívida para com a África. Foi a partir dessa mão-de-obra gratuita que se iniciou, efetivamente, a riqueza do mundo branco ocidental.
Essa riqueza é fruto das atrocidades cometidas contra um povo, no maior genocídio ainda não reparado da história da humanidade. Genocídio e escravidão são crimes contra a dignidade humana, são crimes imprescritíveis, com repercussões através dos séculos. No Brasil, maior pais escravocrata das Américas, teriam entrado 3.600.000 africanos –outro tanto morreu na travessia, nos fétidos porões dos navios negreiros. As consequências disso é o status subalterno da negrada até hoje.
Está na hora da sociedade brasileira, como um todo, ser cobrada. Não queremos apenas o reconhecimento e o pagamento moral desse crime. Além disso, queremos a nossa parte da riqueza que ajudamos a construir. Estamos encaminhando ao Congresso Nacional um projeto de lei por iniciativa popular exigindo que a União assuma e pague essa dívida. Nesta empreitada seria bem-vinda a solidariedade de outros grupos que sentiram na pele o peso da intolerância.

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