São Paulo, domingo, 13 de março de 1994
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'Dilatáveis' desafiam a mídia

RÉGIS BONVICINO

Exposição da artista plástica Regina Silveira em Washington rompe com as narrativas industrializadas
A artista plástica e professora Regina Silveira está, no momento, expondo seu mais novo conjunto de trabalhos –intitulado "Dilatáveis"– no Brazilian American Cultural Institute, em Washington, Estados Unidos. Regina é uma das principais artistas brasileiras. A exposição foi inaugurada em 25 de fevereiro e permanece aberta ao
público até 25 de março.
O que são os "Dilatáveis"? O título da exposição é, em si, poético. E sugestivo. A palavra dilatar –ainda que em estado de dicionário– esclarece: aumentar as dimensões ou o volume de alguma coisa. Estender, alargar, ampliar mas –ao mesmo tempo e contraditoriamente– retardar, adiar, prolongar. Esta ambiguidade de sentidos
está presente nesta nova série organizada por Regina. A série reconstitui numa sequência de imagens dissociadas de suas sombras verdadeiras. Pequenas imagens de homens –em certas situações– com sobras enormes. São imagens
originalmente fotográficas, retiradas de jornais e revistas e pintadas e serigrafadas em lonas, depois de sombreadas.
O "consumo" de imagens da mídia por parte dos artistas é fato corriqueiro desde, pelo menos, a segunda metade do século. Não reside nesta "atitude" portanto a qualidade do trabalho de Regina, que se assemelha –aparentemente– à maioria da produção atual vinculada às vertentes que –genericamente– se pode chamar de "conceituais". As desmaterializações que a artista promove, no caso, são mais consistentes e talentosas.
"Dilatáveis" trabalha com fotos de políticos, autoridades, personalidades esportivas, motoristas de tanques de guerra. Ocorre que Regina devolve às meras imagens um
sentido de personagens. Seu trabalho tem força narrativa. Alguma coisa –que talvez não se constitua em estória– está sendo dita, narrada. As enormes sombras são críticas em relação às pessoas que as projetam e em relação ao olhar, de modo geral. Está certo Carlos Basualdo quando diz que, referindo-se a outro trabalho semelhante
de Regina, "a desproporcionalidade entre sombras e objetos gera um processo que vai além da anamostose em sua violação das leis da perspectiva" (Revista "ArtForum", Nova York, novembro de 1993).
As questões tratadas por Regina, neste trabalho, remontam ao impressionismo (final do século 19), momento em que se inicia a dissolução da figura na pintura.
Giulio Carlo Argan observa que os impressionistas acentuavam o que a recém-inventada imagem fotográfica não podia reter: a cor. Hoje, a fotografia, a TV, a mídia em geral retém e opera basicamente com a cor. Importa então –ao lado do poder narrativo– restaurar aquilo que as imagens midiatizadas não conseguem explicitar: o conteúdo sombrio das fotos, que transformam pessoas, situações,
estória e a própria história em imagens. Cuida-se de "romper" com o tratamento figurativo que os ícones "midiatizados" emprestam às imagens. Trata-se de "romper"
com narrativas industrializadas.
Romper aqui no sentido de se tentar impedir, embora sem resultados, um comportamento mecanicista diante da vida. O crítico Basualdo afirma que,
apontando a cisão entre os objetos e suas sombras na série "In Absentia", de 1983 (leia depoimento de Regina nesta página), a autora apontava, no fundo, para a falta de
limites, na verdade desnecessários, no mundo contemporâneo, entre cópia e original. A questão se complica quando a cisão se dá entre homens e suas sombras. No primeiro trabalho do conjunto, intitulado "O Discurso", uma enorme sombra de uma autoridade lendo, de uma tribuna, um texto parece querer esmagar os supostos ouvintes ausentes. Dá-se a proeminência total –quase totalitária– da ex-figura agora sombra lendo algo. É como se a realidade se materializasse –paradoxalmente– em
sombras.
Inquietante é também o personagem que, batendo continência, projeta –para lados opostos– quatro sombras idênticas. Ou ainda a extensa sombra de um tanque de
guerra, recortada em preto asperamente no branco, reafirmando sua certeza fálica no poder. Se isto não bastasse, Regina projeta as sombras de seis máximos governantes
internacionais –expostos lado a lado– e, apesar da desfiguração, reconhecíveis. Suas sombras os revelam como verdadeiros personagens de Hieronymus Bosch: corcundas, com olhares parados, mas estranhamente altos, elevados, sabe-se lá por que. Sombra é imagem sem brilho. É a "imagem" antimídia.
Regina é a artista de uma poética lunar, de revelar por meio de ausências. Os "Dilatáveis" trabalham com o problema da refiguração ou da representação de sentidos invisíveis. Eles revelam personagens marionetes. Personalidades que são bonecos infláveis operando num "real"congelado. São "sombras arquetipais", que tentam devolver uma certa dimensão de existência –para além da mera projeção– às figuras. Para além dos banais e inconsistente "estranhamentos" da arte atual (no Brasil e no mundo), Regina consegue projetar idéias e reinventar espaços perceptivos com elegância e humor.

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