São Paulo, terça-feira, 15 de março de 1994
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Silva Jardim ou Deodoro

LUÍS NASSIF

O jornalista Silva Jardim foi o mais ardoroso propagandista da República. Com sua retórica impetuosa, vida limpa e energia incansável, percorreu o país levantando a bandeira republicana, cuja proposta central era a de colocar o Estado modernizado a serviço da cidadania.
Quando o discurso já se tornara vitorioso, um acordo político transformou a proclamação em mera quartelada, uma passeata sem povo, que terminou com uma solenidade na Câmara Municipal do Rio de Janeiro –para a qual ninguém foi besta de convidar Silva Jardim.
Antes que o Vesúvio o devorasse, algum tempo depois, ele já havia sido engolido pelos "nabucos", "constant" e "patrocínios", que ganharam lugar na história oficial, como padrinhos dos acordos políticos que preservaram o modelo de exploração do Estado para os novos conquistadores.
Seu insucesso acabou se constituindo em mau exemplo para a vida política nacional. Ninguém se dispôs mais a tentar repetir a trajetória de quem faz o momento, mas não usufruiu dele. Seu fracasso criou um determinismo histórico, que acabou consagrando como símbolo do bom político –aquele que tem a habilidade de contemporizar e de aliciar adversários do modelo agonizante, para fortalecer o poder nascente.
Agora, está-se à beira de romper com esse modelo. A modernização já se infiltrou pelos poros do país. O proselitismo político tem à sua disposição meios de disseminação imediata de idéias.
Falta de senso
Justo no momento em que o mar está para Silva Jardim, com a falta de senso de oportunismo que o caracteriza, o ministro FHC prepara-se para ser nosso Deodoro da Fonseca.
Os argumentos que estão sendo levantados para convencê-lo a disputar a presidência são os mesmos que embasaram todos os acordos de conveniência, que ajudaram a perpetuar o velho modelo de Estado.
Os correligionários lançam em suas costas a responsabilidade por sua própria sobrevivência política. Para conferir alguma legitimidade ao oportunismo, acena-se com a perspectiva de salvação nacional. Mas, para salvar o país, há a necessidade de realismo político –o mesmo realismo que marcou a Aliança Democrática e que expulsou todos os "silva jardins" da vida nacional.
O roteiro é velho conhecido, ainda mais para um sociólogo especialista em América Latina, como é o caso do ministro. O instinto de sobrevivência das velhas raposas faz com que haja uma união em torno de quem consiga exprimir, da maneira mais articulada, idéias legitimadoras que permitam mudar para ficar do mesmo jeito.
Medidas objetivas de controle do Estado são trocadas pela retórica e por um pragmatismo fatal. É preciso conceder agora para conquistar o poder e mudar mais tarde. No final, o pragmatismo impõe-se em todos os passos do novo governo, por mais reformador que seja, matando os objetivos iniciais.
O ministro tem em suas mãos um grande desafio. Se fica e empalma as bandeiras de modernização, arrisca-se a não obter as reformas –e ainda perder a presidência. Mas também pode passar para a história como o homem que libertou o país de quatro séculos de exploração política. O quadro está maduro. Basta um empurrão.
Se sai candidato e o plano fracassa, ele não vence. Se vencer, não leva. Corte-se, por mentirosa, essa suposição de que será possível fazer alianças com o diabo, deixar o plano naufragar agora e –como sir Galahad– empunhar o cálix bento, depois de eleito, e salvar o país.
Dúvida atroz
Às vezes julgo que é o medo de cair em um ceticismo estéril que faz com que alimentemos a esperança de que, provocado, o ministro ganhe coragem e comande as reformas.
Se quisesse mesmo levantar a bandeira, nada impediria que ele a empunhasse desde agora –sendo candidato, ou não.
Tribunal de Contas
Hoje, às 9h30 da manhã, a Câmara Municipal de São Paulo vai inquirir, em sessão aberta, os dois candidatos à vaga de conselheiro do Tribunal de Contas do município –o terceiro em importância do país. Um dos candidatos é um vereador de alcance paroquial, indicado no âmbito de um arreglo partidário. O outro, uma funcionária padrão, sem militância partidária, indicada pelo conjunto de funcionários –abrindo um precedente da mais alta relevância, dentro da grande luta pelo disciplinamento do Estado.

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