São Paulo, sexta-feira, 18 de março de 1994
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Receita de presidente

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – Em princípio, qualquer cidadão pode ser presidente da República. É mais ou menos como os espermatozóides: muitos são liberados, mas somente um é escolhido.
Não é a vontade individual do candidato que conta: houve presidentes contra a vontade. Getúlio Vargas, em 1950, já não queria nada com a vida pública, mas era um animal político, vivia em "standy by" para aquilo que ele chamava de "império das circunstâncias".
Juscelino quis, e muito, removeu montanhas, atravessou oceanos a nado para chegar lá. Figueiredo nem tanto, o cavalo passou à porta, ele gostava de cavalos: montou. Lacerda quis muitíssimo, Jânio quis demais e ficou com menos. Collor nasceu e morrerá querendo: foi um binômio de vontade e cara-de-pau.
Se não é a vontade pessoal que faz um presidente, se a simples cara-de-pau não basta (embora ajude), há que se contar com a vontade e a cara-de-pau dos outros. Não dos eleitores: eles serão a limalha a ser atraída pelos centros magnéticos. Estabelecido o campo de atração, arruma-se a zona de influência dos mais imantados.
O escolhido será aquele com chances de atrair mais e repelir menos. Recomenda-se que o pretendente seja bom de urna, nem muito rico nem muito pobre e, principalmente, não possua experiência específica de qualquer coisa.
O candidato presidencial é uma espécie de Santo Gaal: muitos são os cavaleiros que saem à sua procura, muitos os gladiadores que matam ou morrem para tê-lo em mãos. Por isso mesmo ele não deve ter equipe pré-formada, quanto mais gatos pingados houver à sua volta, mais forte ele será. Esses gatos pingados mais tarde serão aproveitados e distribuídos pelos porões do palácio. Um ou outro chegará a porta-voz, a chefe de segurança, a subchefe de qualquer coisa.
O manjar do poder será reservado aos aliados. Assim, o pretendente é obra coletiva de dezenas de pretendentes, obra coletiva como uma enciclopédia, uma catedral gótica. Núcleo e imã central, forma-se o candidato final. Mesmo eleito, nem sempre chega a ser um presidente da República.

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