São Paulo, sábado, 19 de março de 1994
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Casamento com traição

PAULO SÉRGIO PINHEIRO

Como se diz nos chás da universidade, esse casamento é um tremendo "déjà vu". Nada mais igual a um conservador do que um liberal no governo, dizia-se no Império. Em 1985 a aliança entre o PMDB e o PFL selou o fracasso das Diretas-Já e fez a ditadura terminar sem ruptura. Apesar da galeria de horrores desse casamento, tamanha é a sedução que a velha união está de volta.
Qual é o ardor que move essa saga? Aparentemente a desqualificação da esquerda –agora do PT– que teima em não entender a genialidade da conciliação das elites. Não é por mal, coitadinhos não entendem o que está acontecendo no mundo. E por causa disso não conseguem nem defender seus interesses objetivos e teimam em preferir o "radicalismo": votar em Lula.
O que o Brasil precisa, segundo os intelectuais do progresso com responsabilidade? Um candidato racional, fino, culto, competente, com concepção justa do capitalismo contemporâneo, na hora do centro. Surpresa! É o que só o PSDB pode oferecer!
Puro repeteco. Querem vender-nos o mesmo logro daquele deslumbramento que essas correntes do PSDB, assanhadíssimas pelo casamento com o PFL, tiveram pelo escroque-presidente. Por pouco o PSDB não caiu no colo do criminoso. De novo, essas correntes celebram os mercados (aqui com trabalho para os brancos, criadas, linchamentos e tortura) como um meio técnico para promover a eficiência econômica. Mas os mercados não são neutros economicamente e politicamente.
A doutrina que preconiza a renúncia das responsabilidades sociais do Estado agrava inevitavelmente a má distribuição de renda (já temos uma das piores do mundo). Quanto mais uma economia é de mercado, mais desigual sua sociedade. As doutrinas de privatização e desregulamentação na verdade são instrumentos de exclusão social e econômica. Da Grã-Bretanha à Espanha (10% e 20% de desempregados). Ah! nos EUA, essas propostas que excitam o PSDB foram derrotadas por Clinton.
Mas, na reviravolta em curso, nem requer uma traição dessas correntes às próprias convicções: o horror das elites ao PT corresponde desde sempre uma enorme desconfiança à manifestação autônoma das classes populares. É preciso impedir a todo custo a emergência do conflito. Há um medo terrível da mobilização e da organização social e sindical.
O engano dessa união espúria é que hoje a reivindicação maior do bom povo não é só racionalidade, mas honestidade e transparência. Não ajudará ao PSDB render-se ao cinismo e ao oportunismo de um casamento que leva dissimulada uma traição: se chegassem ao governo o projeto seria do PSDB, tranquilizam-nos. É insustentável imaginar que as tensões resultantes do apoio da direita garantam mais governabilidade que um governo do PSDB com o PT, os honestos do PMDB e o arco progressista.
Se o PSDB se unir com os herdeiros do coronelismo e do fisiologismo autoritário, renunciando àquela aliança alternativa, jogará fora uma oportunidade histórica. Colaborar para desmontar de vez as artimanhas da conciliação, terminar (enfim) a transição brasileira e construir afinal uma ruptura para a democracia.

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