São Paulo, domingo, 20 de março de 1994
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O pesadelo americano de Carver

MARIA ERCILIA
EDITORA-ADJUNTA DO MAIS!

Casamento, separação, pequenos empregos, desemprego. Morte. Com estas poucas notas Raymond Carver (1939-1988) organiza o mundo de seus contos sempre muito curtos. Ele passou a juventude equilibrado na estreita linha da subsistência, onde seus personagens estão para sempre aprisionados. A tal ponto que escrevia contos por não ter tempo nem energia para histórias mais longas. O assunto de carver não são os marginais, mas os perdedores da sociedade de consumo – gente com sonhos pequenos e dramas mínimos.
"Short Cuts", a coletânea que acaba de sair pela editora Rocco, vem na esteira do lançamento de "Short Cuts - Cenas da Vida", filme de Robert Altman que estreou na última sexta-feira. São nove contos e um "poema" (na verdade um monólogo narrativo que Carver chamou de poema), que nunca haviam sido reunidos em livro antes. Constituem uma excelente amostra das vinhetas telegráficas desse escritor que já foi classificado de "minimalista". Seja lá o que for isso, parece um equívoco. Carver é um realista, quase um naturalista.
Em seus melhores momentos, Raymond Carver é capaz de criar poderosos equivalentes visuais para as situações descritas em seus contos. Imagens que perduram na memória, não exatamente como símbolos, mas como concretizações de sentimentos e pulsões apenas sugeridos.
Em "Vizinhos", um casal toma conta de um apartamento durante a viagem de outro casal, que parece ligeiramente mais afortunado e feliz. A intimidade desvelada do apartamento alheio provoca neles uma excitação sexual e um estado exaltado, como se tivessem captado um relance de um outro mundo. O apartamento é como a encarnação de desejos abafados e cobiça reprimida, subitamente ao alcance dos dois.
Em "Tanta água, tão perto de casa", Stuart sai para pescar com amigos. Encontra o corpo de uma moça estuprada e morta boiando num rio (leia texto abaixo). Ele e os amigos calmamente amarram o cadáver numa árvore e continuam a pescaria. A mulher de Stuart fica obcecada com o corpo, e o marido tenta contornar a situação. fica claro que ele é um homem à beira da violência e sexualmente agressivo, e que ela é uma mulher frágil e à beira da histeria. A moça morta permanece entre eles como uma representação dessas correntes de tensão subterrâneas, sem que muito precise ser dito. É como um resumo estático do drama e suas implicações.
Não poucas vezes Carver escorrega perigosamente no sentimentalismo. Em "Uma Coisinha Boa", por exemplo, a sensação é de absoluta previsibilidade, e de uma certa manipulação de emoções fáceis. Quando porém dirige seu foco para abreviados e tensos diálogos de casais (o que ele faz quase o tempo todo), capta com enorme precisão o inferno da intimidade entre dois seres humanos.
O rótulo que geralmente se pendura em Carver é o de retratista de um mundo "sombrio" por sua ausência de sentido. Mas mesmo seus contos mais melancólicos suportam mal este clichê.
Ao contrário ele parece procurar o tal "sentido" onde ninguém mais procuraria, em vidas iguais e monótonas, contaminadas pelo pesadelo americano do mesmo -- cidades e cidades de paisagem igual, com supermercados iguais e posto de gasolinas e empregos iguais. Às vezes esta procura escorrega no sentimental, às vezes esbarra no sublime. Seus personagens parecem sempre perplexos, à beira de uma descoberta que jamais se realiza totalmente: de que suas vidas talvez possam ser, talvez sejam, matéria de um sonho, de um conto, até um poema.

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