São Paulo, domingo, 20 de março de 1994
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Nada como SER ATOR

IGNACIO CARRIÓN

Por Ignacio Carrión*
O galês Anthony Hopkins, 56, foi o canibal Hannibal Lecter em "O Silêncio dos Inocentes", é o mordomo Stevens, de "Vestígios do Dia", e será o intelectual C.S. Lewis em "Shadowlands", de Richard Attenborough. Aos 25 filmes, Hopkins chega ao patamar dos intérpretes classe A pensando: "Ser ator é como não ser nada"
- Entre!
- Bom dia!
- Good morning, mas cuidado para não pisar em minha dentadura postiça.
- Dentadura postiça?
- Sim, está aí, à sua esquerda. Por favor, passe para cá. Logo mais terei que colocá-la. [Vira-se e coloca a dentadura, enquanto uma maquiadora corta o seu cabelo a quase zero]
- Careca e com dentes de coelho? O que é isso, sr. Hopkins, mais um personagem monstruoso?
- Não, não. Não se assuste. estou interpretando o Dr. Kellogs, o inventor dos cereais matinais.
- As filmagens estão começando?
- Já estamos no meio, ainda bem. Na Carolina do Norte, local das filmagens, faz muito frio. Eu temo que Alan Parker, o diretor desta amalucada comédia alimentícia, se congele. E os tempos não estão para que bons diretores se congelem...
- O sr. é feliz?
- Não poderia ser mais. Desejei a vida inteira deixar de ser um coadjuvante, estar em primeiro plano. Consegui. E não tive que implorar a ninguém.
- Sua vida profissional se divide em antes e depois de "O Silêncio dos Inocentes". Mas os últimos dois filmes, "Os Vestígios do Dia" e "Shadowlands", genuínas histórias de amor, parecem iniciar uma fase de uma pessoa terna e adorável. Confere?
- Sim. Até estes dois filmes, meus papéis foram de personagens monstruosos, de gente muito perigosa.
- O que o sr. não é, supõe-se. Ainda que numa entrevista recente tenha dito que não se tornou um criminoso ou psicopata justamente por ter sido ator.
- Eu disse isso? Não creio. O entrevistador deve ter entendido mal. Passo muito bem sendo ator. Além do mais, desde há uns anos, não me levo a sério em absolutamente nada. Eu rio muito de mim mesmo.
- O sr. foi interno desde os 12 anos em um colégio autoritário, prematuramente alcoólatra, fracassado em seu primeiro casamento, pai de uma filha única que só viu até a adolescencia... O sr. é uma pessoa "pesada"?
- Náo. Estou sempre rindo. Quando atravessei períodos duros em minha vida, levava as coisas muito a sério. Agora ajo de outro modo. Estamos neste mundo só por uma vez e por pouco tempo, temos que desfrutar cada momento. Compreendi isso com a idade. Lamento não ter rido mais quando jovem.
- O sucesso e a fama o ajudaram a encarar a vida dessa outra maneira?
- Sim. Estou mais seguro. Vejo que me aceitam e eu também aceito. Antes eu me perguntava porque tinha que ser ator, sempre me torturava sobre o porque de cada coisa. Até que finalmente disse: "Por que não?"
- O sr. se conhece bem?
- Não tenho nem idéia de quem sou. Nem sei se isso me faz falta. Me levanto a cada dia, trabalho, vivo. Não sou como o personagem de "Guerra e Paz", que gasta a existencia se perguntando qual o sentido da vida e quando morre encontra a resposta: viver cada dia como se apresenta.
- É uma característica dos sábios.
- Eu cheguei à conclusão de que sou ator porque fui incapaz de manter um trabalho fixo. E ser ator é como ser nada. Te pagam para fazer um papel, decorar o script e pronto.
- É tão fácil assim?
- Sim. Dentro de dez minutos vamos rodar. E não sei como vou fazer. Não me preocupa saber como tenho que me movimentar. Improvisarei. O personagem sairá na realidade como ele é. São truques, experiencia. Asseguro que é fácil.
- O sr. é sabidamente frio. Essa é a fórmula do bom ator?
- Meu lema é evitar a mediocridade, mas sem cair no perfeccionismo. A perfeição pode enlouquecer.
- Não é saudável ser um pouco louco?
- É preferível ser um pouco malvado.
- O sr. tem algum outro lema?
- Não ficar nervoso. O nervosismo é a vaidade disfarçada. Voce quer fazer melhor e fica nervoso. O ego incha.
- Como está o seu ego?
- Pergunte à minha mulher, Jenni, que deve chegar logo. É ela que le as críticas para mim. E, geralmente tenho sido elogiado, digo: "Leia mais, querida! Quero alimentar meu ego!". Mas Jenni me corta: "Amanhã, Tony". Existem atores, principalmente em Hollywood, que acreditam ser divindades. Mas viram loucos. O próprio ego os devora.
- Qual o seu ator preferido?
- Marlon Brando. É melhor atualmente. E Bette Davis, uma das maiores de todos os tempos. Bom, Jenni já chegou. Pergunte a ela sobre o meu ego. [Jenni é uma mulher magra, não muito alta, como Anthony Hopkins, que mede 1,75m].
- Sim, Tony tem seu ego bem alimentado, mas sob controle. Eu gastei uma caixa de lenço quando assisti "Shadowlands". Faz todo mundo chorar, menos Hopkins, esse produto masculino made in Britain, à prova de emoções.
- eu li uma vez que, quando o sr. se encontrou com sua filha Abigale depois de muito tempo, ela perguntou se poderiam viver juntos, apesar de ela consumir drogas. E que o sr. respondeu sim, mas não queria ver a polícia em sua casa...
- Minha filha não se droga. Não falemos disso, por favor.
- Está bem. Só me interessa saber o que o sr. acha do consumo de drogas e dos jovens que fazem uso delas.
- As pessoas fazem o que querem. Você não pode impedir.
- O sr. vai continuar trabalhando sempre?
- Me vejo trabalhando por mais 20 anos. Até que queiram se livrar de mim e me dêem um tiro. Ou até que eu perca a memória e seja incapaz de decorar um script. Então farei papéis de segunda. Não sou ambicioso.
- Em "Shadowlands", seu personagem grita a certa altura: "Somos cobaias do laboratório de Deus!". O sr. concorda?
- Sim. Não sou um homem religioso. Não consigo aceitar o sofrimento do mundo, na Bósnia, na Somália. É injusto que morra gente inocente, que haja perseguições, que exista o genocídio. Compreendi que o único sentido da vida é desfrutá-la. Se não há nada depois, isso é o que levaremos dela. E se há algo, mesmo que seja só um sonho, a desfrutaremos duas vezes. Não consigo ver mais que isso.
*DO "EL PAÍS"/ TRADUÇÃO SÉRGIO DÁVILA

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