São Paulo, segunda-feira, 21 de março de 1994
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Lula: o apelo das favelas

FLORESTAN FERNANDES

A "campanha civilista", de Rui Barbosa, irradiou-se entre os letrados e os eleitores que possuíam cidadania enraizada na minúscula sociedade civil encravada na civilização. Lula, guardadas as proporções intervenientes, transcendeu esse universo do civilismo, para difundir a cidadania ativa como fundamento da existência civilizada dos de baixo. Seu circuito político irrompe contra a tirania de uma ordem social cujo equilíbrio se funde com a barbárie.
Ele desarranjou a paz dos de cima, sua arte de viver, de corromper e de mandar. De repente, parece que a fórmula certa consiste em o Brasil acabar com a saúva. Resta, entretanto, um desafio. E as favelas das periferias das megalópolis, das metrópoles e das cidades médias –todas inchadas–, como ficam? Elas não merecem incursões indagativas intensas? Serão rejeitadas nessa cruzada de liberação da consciência e da faculdade de votar certo do homem mais ou menos rústico, castigado pela exclusão ou pelo civismo castrado?
Na via crucis da busca de votos, quando me tornei candidato do PT a um mandato de deputado constituinte, uma das experiências marcantes que vivi transcorreu em uma favela. Cleodon Silva, da oposição sindical, e outros companheiros, levaram-me a uma favela para discutir, em uma das casas, a natureza do Estado. Escolhi o livro célebre de Engels, por seu texto claro e por sua formulação direta nas relações das classes, da luta de classes com o Estado capitalista. A exposição durou pouco mais de uma hora. Os debates se estenderam, como se devêssemos passar a noite examinando o assunto. Ninguém arredava pé e as questões, no começo vacilantes e dispersivas, encorparam-se e se prolongavam sem perspectiva de um ponto final. Colocou-se, então, o problema: como sair de lá? Foi uma líder sindical, mais enérgica, que arrancou-me no muque. Quando atravessava a porta, uma senhora de seus 50 anos interrompeu-me e indagou: "Professor, o senhor não vai fazer como os outros? Não vai se esquecer de nós?" Disfarcei as lágrimas que rolaram, olhei para todos muito comovido, sem dizer nada. O que falar? O ser político manifestava-se ali, no microcosmo da favela.
Lula não pode ignorar esse desdobramento urbano, semi-urbano ou quase rural dentro das cidades. Como as vilas-dormitórios, esse é um mundo à parte. Ele exige atenção especial e o mesmo carinho que os sem-terra, os índios, os negros, enfim, a ralé pisoteada pela má sorte, carência de educação, a pobreza e o desemprego, as engrenagens devastadoras da economia, da sociedade e da opressão misturada com a violência do poder público e privado.
Lula precisa preparar tal excursão e exibir o seu sorriso confiante a essa multidão de "humilhados e ofendidos". Os movimentos do PT chegam até eles, por vários canais. Mas eles precisam ter certeza de que não são rejeitados e ouvir de sua boca a confissão de que a solidariedade e o amor assumem múltiplas formas.

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