São Paulo, quarta-feira, 23 de março de 1994
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Impor limites legais à insensatez dos Poderes

ANTONIO KANDIR

Os aumentos salariais que se autoconcederam deputados e ministros do Supremo Tribunal Federal explodiram como uma bofetada no rosto de todos nós.
Cada um a seu modo e alegando razões distintas, mas ambos com insensatez e arrogância sem par, Câmara e STF julgaram-se no direito de mandar às favas o equilíbrio orçamentário, peça-chave do processo de estabilização, pendurando uma conta que pode vir a custar mais de US$ 2 bilhões aos cofres públicos.
Acenderam o fósforo para ver se havia gasolina no tanque: havia, e muita. Provocaram uma crise institucional com o Executivo e atiçaram indignação que, se transformada em revolta, pode vir a ameaçar os Poderes que representam.
Tamanha falta de compromisso com o país e senso de oportunidade causa espanto e preocupação. Mesmo que o Senado derrube a decisão da Câmara, o que parece provável, e os ministros do STF revejam a decisão que tomaram, os danos à credibilidade do Legislativo e do Judiciário não serão facilmente sanados. Restará a firme desconfiança de que seus membros não se pautam pelo bom senso, para não falar em espírito público.
A permanência dessa desconfiança é particularmente grave num momento em que o país joga cartada decisiva para debelar a inflação e criar uma moeda estável, confiável. Para alterar esse quadro, em que se amplia o fosso entre governo e sociedade, não basta manifestar indignação. É preciso encontrar solução prática para o problema.
A bem da razão e do bom senso, é bom lembrar que a norma que concede autonomia aos Poderes na fixação dos rendimentos de seus ocupantes nada tem de absurda em si mesma. Antes o contrário: ela é peça-chave para assegurar-lhes a independência, sem o que a democracia não pode existir.
Fosse diferente –pudesse por exemplo o Executivo determinar os salários de deputados, senadores e magistrados–, a independência dos Poderes seria reduzida à mera ficção. Aí sim a norma do "é dando que se recebe" iria consagrar-se em definitivo, com parlamentares e juízes trocando apoio por condições de sustentar a família.
Mas como conciliar a necessária independência dos Poderes, sem o que não há democracia, com a existência indispensável de mecanismos de controle sobre autofixação dos rendimentos por parte dos ocupantes do Legislativo, Judiciário e Executivo?
O castigo eleitoral não parece suficiente nesse caso, porque os danos são imediatos e o castigo, quando vem, não consegue repará-los. O estrago já está feito. Além disso, no caso do Judiciário não pesa, nem poderia pesar, a ameaça do castigo eleitoral.
Em face da gravidade do problema e da ausência de outros mecanismos de controle, chegou a hora de enfrentar os inconvenientes de estabelecer regras rígidas quanto às despesas de pessoal e custeio, caso contrário temo que a existência de uma moeda estável não passe de sonho passageiro.
O preço dos inconvenientes associados à rigidez é mais que compensado pelos danos causados pela ausência de limites. Não havendo disciplina nos gastos de pessoal e custeio, não haverá moeda estável. Não havendo moeda estável, não haverá retomada sustentada do crescimento.
Para haver moeda estável, é necessário respeito à capacidade da sociedade de pagar impostos e disponibilidade adequada de recursos para as atividades-fim do setor público, como saúde, educação etc. Para tanto, é necessário impor disciplina aos gastos com atividades-meio.
O ideal seria que houvesse autodisciplina. Mas, em vista de provas reiteradas de que a autodisciplina dos Poderes é exceção e não regra, em vista também da desconfiança insanável que se cristalizou na sociedade, não há outra saída senão fixar em lei restrição orçamentária para os gastos com custeio e pessoal. Não vejo outra maneira de impedir que se repitam novos insultos à cidadania brasileira, sem arranhar a independência dos Poderes e a democracia.
Proponho, assim, que seja estabelecida restrição orçamentária para os gastos de custeio e pessoal de cada um dos três Poderes, discriminadamente. A restrição consistiria num determinado percentual da arrecadação global do governo da União, sendo reservado a cada um dos Poderes livre-arbítrio quanto à alocação do montante recebido, salvo outras disposições legais em vigor.
A fixação desse percentual, desse limite de gasto para cada um dos três Poderes, é matéria técnica e política que não admite decisões apressadas. Trata-se de problema estrutural que requer solução estrutural e não episódica.
Com vistas a encontrar solução duradoura à grave crise que se instalou, cujos desdobramentos a médio prazo são imprevisíveis, o presidente Itamar Franco tomaria atitude de grande importância e significado se propusesse a constituição de uma comissão formada por membros dos três Poderes para, em prazo determinado, elaborar projeto de lei sobre a matéria.
A sociedade, e a imprensa em particular, caberia exercer pressão democrática para que a comissão cumprisse o cronograma estabelecido e o Congresso aprovasse a fixação em lei de restrições orçamentárias para gastos de custeio e pessoal de cada um dos três Poderes, individualmente. Mobilização nesse sentido daria consequência prática e não-autoritária à enorme indignação que tomou conta de todos com os episódios da última semana. Seria um passo gigantesco em favor da democracia e da estabilidade econômica.

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