São Paulo, sexta-feira, 25 de março de 1994
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Plano FHC - violências à vista

EDUARDO RIBEIRO CAPOBIANCO

Congelar contratos é um sinal verde para a violência entre clientes e fornecedores
Entre as medidas constantes do plano antiinflacionário recém-anunciado pelo ministro Fernando Henrique Cardoso encontra-se dispositivo que proíbe, em contratos, cláusulas de reajustamento de pagamentos em prazos inferiores a um ano.
À primeira vista, pode parecer que se trata de providência justa, significando como que a contrapartida empresarial à fixação anual dos salários. Este raciocínio, entretanto, é equivocado, pois as duas situações são muito diferentes. O congelamento de contratos representa um sinal verde para a prática da violência entre clientes e fornecedores de bens e serviços caracterizados por ciclos longos de produção –como é o caso, entre outros, da indústria de bens de capital e da construção civil. Fica instituída a lei do mais forte. Vejamos por que.
O princípio fundamental de todo contrato, sem o qual as relações econômicas de longo prazo se tornariam impossíveis, é a manutenção das condições com que as partes concordaram originalmente. Tais condições se traduzem numa equação que gira em torno de um componente fundamental: o preço médio dos insumos. Nos setores altamente competitivos (como a construção civil), a margem de lucro decorre da capacidade empresarial de conseguir custos menores do que os preços médios de mercado. Em outras palavras, o lucro decorre da eficiência em administrar custos; terá maiores lucros quem for mais eficiente do que a média da concorrência.
Parte dos contratos firmados entre os agentes econômicos se referem a bens e/ou serviços para pronta entrega. Digamos, eletrodomésticos. O fornecedor forma seu preço a partir dos custos dos insumos; a partir disso, negocia com o cliente. Fechado o negócio, produz os bens, entrega-os e manda a fatura para o banco. No mês seguinte, nova negociação, realizada com base numa nova composição de custos, resultando num preço diferente (menor ou maior, dependendo do comportamento do mercado de insumos).
No caso de bens e serviços para entrega futura, decorre um prazo (que tipicamente se conta aos meses, mas que pode chegar a anos) entre negociação (que, no caso de o cliente ser o Estado, ocorre numa concorrência pública) e entrega. O bem ou serviço não é executado imediatamente, mas ao longo do tempo, e empregando insumos que vão sendo adquiridos aos poucos. E os pagamentos, do mesmo modo, não são feitos à vista, mas por meio de parcelas mensais.
Acontece que fornecedor e cliente não repactuam as condições do negócio (não refazem a equação) todo mês. Em lugar disso, incluem nos contratos cláusulas de reajuste com base em índices setoriais, que refletem as variações médias dos custos dos insumos. Tais cláusulas assumem, nesses contratos, o papel que as renegociações mensais desempenham no exemplo dos eletrodomésticos.
Em parte nenhuma do mundo fornecedores ou consumidores de bens e serviços para entrega futura concordam em assinar contratos no escuro, ou seja, sem estas cláusulas de reajuste por índices setoriais. E o motivo é evidente: se os preços médios dos insumos caem, o cliente deve ser beneficiado, por meio de abatimento da parcela correspondente ao período em que houve tal queda; e se eles sobem, não deve caber ao fornecedor bancar a diferença em relação ao patamar anterior. Em outras palavras, o reajuste por índices setoriais é o que garante o equilíbrio econômico-financeiro entre as partes.
Como cada setor usa diferentes insumos e em proporções variáveis (e mesmo dentro de um mesmo setor diferentes segmentos empregam materiais e serviços distintos), cada um deles é afetado diferentemente pelas oscilações individuais dos preços. É este o motivo pelo qual cada setor tem um índice que mede com mais precisão o comportamento global dos preços dos insumos. Observe-se que tais oscilações são perfeitamente normais em qualquer economia. Aliás, um dos importantes pressupostos do Plano FHC é exatamente a necessidade de os preços permanecerem livres para oscilar.
O ponto fundamental a notar é que isso não tem qualquer relação com a inflação: a cesta de produtos que compõem um certo índice é diferente da cesta que mede as variações de outro setor e ambos são diferentes da cesta usada para medir a inflação global.
Vejamos isso mais de perto, no caso da construção civil. Nos contratos que envolvem este setor empregam-se índices como o ICC da Fundação Getúlio Vargas, o índice da construção da Fipe, o Custo Unitário Básico da construção (CUB). Diversos órgãos públicos, seja federais, estaduais ou municipais, também acompanham os preços de mercado e os usam na elaboração de índices, que comparecem em seus contratos.
O gráfico nesta página exibe o comportamento do Custo Unitário Básico da construção (São Paulo) entre 1985 e 1994, deflacionado pelo IGP-DI. O gráfico não é uma reta, mas uma curva fortemente oscilante. Quer dizer, se descontada a inflação, os preços dos insumos da construção civil ainda assim sobem e descem continuamente. Isso é bem caracterizado, por exemplo, no biênio 92/93. Observe-se ainda que, entre os Planos Cruzados 1 e 2 o CUB elevou-se em mais de 70%, e que, entre meados de 1989 e a edição do Plano Collor 2, houve decréscimo do CUB, da ordem de mais de 50%.
Pois bem, caso persista a intenção de se congelarem todos os contratos e, assim, fazer letra morta das condições pactuadas originalmente, oscilações como estas (para mais ou para menos) não poderão ser incorporadas aos pagamentos que clientes (públicos ou privados) fazem a fornecedores.
E isto representa a lei da selva, pois nestas condições uma parte, momentaneamente favorecida pela conjuntura, poderá exercer poder de coerção sobre a outra parte. Seja o fornecedor que deixará de entregar o bem ou serviço, seja o cliente (tipicamente o Estado), que tentará obrigar seus fornecedores a continuar a fornecer o objeto do contrato a preços irreais.
Isso inviabilizará a operação das empresas. Contratos deixarão de ser honrados, obras serão paralisadas, serviços essenciais deixarão de ser prestados, bens não serão entregues, a Justiça se congestionará ainda mais com os inúmeros processos que sem dúvida se abrirão em torno do assunto. No caso específico da construção civil, uma das consequências será a redução do número de postos de trabalho, o que neste setor tem repercussões graves para grandes contingentes populacionais. De quebra, numa situação como esta se beneficiarão os aventureiros, aqueles que assinam contratos sem a intenção de cumpri-los.
Para evitar estas distorções, os contratos de fornecimento de bens e serviços para entrega futura (e não só os da construção civil) devem continuar a ser regidos pelas normas universais que garantem o equilíbrio econômico das partes. Índices setoriais precisam continuar a regular reajustamentos mensais de pagamentos. Sem isso não se assegurará uma transição sem sobressaltos para uma economia saudável.

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