São Paulo, sexta-feira, 25 de março de 1994
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Guignard e Pancetti pintam outro Brasil

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Duas bonitas coleções de pintura moderna estão atualmente expostas em São Paulo. A de Gilberto Chateaubriand, no Sesi, e a de Roberto Marinho, no Masp.
Comparar as coleções seria um exercício crítico demasiado previsível. Por razões óbvias, as antipatias gerais se voltam contra o "dr." Roberto Marinho.
Não importa. Ambas devem ser vistas.
Uma coisa me chamou a atenção nessas mostras. Talvez seja simples coincidência, talvez seja efeito de um fenômeno mais amplo, mas o fato é que dois pintores se destacam: Pancetti e Guignard.
Se esta avaliação for mera impressão pessoal, tudo bem. Mas desconfio que há fatores objetivos em jogo.
Em primeiro lugar, claro, a quantidade. Há muito mais quadros de Pancetti e de Guignard nessas exposições do que de Anita Malfatti ou Lasar Segall. Noto a ausência de Clóvis Graciano e uma representação mínima de Volpi.
Fica fácil, assim, que Pancetti e Guignard apareçam mais.
Mas não é isso. Tarsila do Amaral, com três quadros de grandes dimensões na mostra de Gilberto Chateaubriand, ocupando um lugar de destaque, convence pouco. Aquele seu "Urutu", sinceramente, é feio que dói.
Portinari e Di Cavalcanti têm sido considerados, notoriamente, como os grandes pintores do século 20 no Brasil.
No caso de Portinari, a coleção Roberto Marinho é especialmente infeliz. Há uma "Flora e Fauna Brasileiras" que é de sair correndo. Das 13 obras desse autor, salva-se a meu ver somente uma –"Bois", de 1940.
No caso de Di Cavalcanti, o problema é mais complicado. Toda uma opulência escura, uma ocupação ousada do espaço, como que explodindo a tela, sem alegria, mas numa palpitação extrema de realidade e de vida, aparece em "Mulheres na Rua" (1940) e "Nus", na coleção Roberto Marinho, assim como nas "Mulheres com Violões" da mostra Gilberto Chateaubriand.
Mesmo assim, a qualidade dessas obras se destaca menos do que as de Pancetti e Guignard. Por quê?
Talvez estejamos assistindo a uma mudança nos padrões de gosto. Portinari tem sido vítima, ultimamente, de uma reavaliação crítica. De tanto aparecer em leilões, e de tanto ser grosseiramente falsificado, Di Cavalcanti desperta suspeitas, algum tédio, e certamente injustiças. Anita Malfatti, Lasar Segall e Tarsila localizaram-se em nichos próprios de admiração. Volpi ficou entregue aos concretistas e às portarias de edifícios de luxo, repetindo-se à exaustão. Mabe, Aldemir Martins, saturaram o mercado. As gravuras de Graciano também.
Seis igrejinhas de Ouro Preto festejam, suspensas no ar, numa bruma quase verde, a data do padroeiro. A topografia da cidade altera todas as relações de espaço, fazendo da lua minguante uma presença próxima e baixa, enquanto que miniaturas infantis, um trenzinho, alguns balões, pessoinhas vermelhas e amarelas mergulham em penhas irreais, atravessadas de pontes brancas. O desenho é de brinquedo, o ambiente e a luz são de Turner, o vago e o preciso se misturam numa tela que é puro sonho. A paisagem está toda transfigurada, vista de uma distância sideral.
Com relação a Pancetti, é difícil escolher o quadro mais bonito. Em cada marinha sua a água mostra uma nova cor. A serenidade, o horizontal dessas pinturas declina de qualquer vibração da luz, de qualquer corte abrupto no espaço. Tudo é planificado, areia, céu, recife, mar, laguna.
São paisagens quase abstratas. A cor se faz limpa, sem mistura, como mancha lisa em tela, distante de sugestões emocionais ou meteorológicas. Não há "atmosfera", não há "clima", não há patético nessas organizações apolíneas, mallarmeanas, da visão. Tudo está depurado, ao mesmo tempo seco e embriagado de mar.
Nos dois casos, em Guignard e Pancetti, podemos ver uma coisa que cai bem no gosto contemporâneo. Trata-se de paisagens brasileiras, tendendo ao ecológico, ao praiano desabitado, em Pancetti, e ao patrimonial-histórico, ao comdephaatiano lírico, em Guignard.
O brasileirismo "antropológico" (mulatas do Mangue, retirantes, moleques de Brodósqui, Di Cavalcanti e Portinari) tende a ficar em desuso. O retrato do Brasil, hoje, é mais uma questão de ecologia e de preservação do que de paisagem humana.
Acima das qualidades específicas de cada pintor, Portinari ou Guignard, Di Cavalcanti ou Pancetti, intervém, assim, um mecanismo ideológico a determinar a recepção dos quadros que eles fizeram.
A arquitetura azul das telas de Pancetti, a minúcia mineira de Guignard, nos encantam mais que o humanismo bruto, os suores modernos de Di Cavalcanti, ou que a secura lívida, as geometrias pobres de Portinari.
Tudo isto é uma hipótese, uma conjetura. Baseia-se em duas exposições que refletem preferências pessoais de comprador de objetos de arte e numa visita subjetiva ao que ali foi exposto. Desenvolvi, apenas, minhas suspeitas. Mas os quadros de Guignard e de Pancetti são mesmo uma beleza.

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