São Paulo, domingo, 27 de março de 1994
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Censores proibiam até noticiário sobre a epidemia de meningite

NELSON BLECHER
DA REPORTAGEM LOCAL

Foi amplo o espectro de notícias sonegadas aos leitores, ouvintes e telespectadores em razão da censura imposta à imprensa, que se tornava mais rígida quando se tratava de defender o aparelho de segurança ou ocultar rachaduras no monolítico sistema instaurado pelo regime militar.
O dossiê foi editado pelo jornalista Claudio Abramo, quando Boris Casoy era o editor-responsável do jornal. Otavio Frias Filho, atual diretor de Redação da Folha, diz que "durante o período inicial, o regime militar teve apoio de praticamente toda a mídia. Seguiu-se um período intermediário, que coincidiu com o endurecimento do regime, em que algumas publicações, entre elas 'O Estado de S.Paulo', tiveram uma atitude de resistência. A Folha não tinha condições de levar adiante uma resistência desse tipo, mas teve uma participação realmente importante no terceiro período do regime militar, a partir do final do governo Médici e início do governo Geisel, quando o jornal contribuiu muito para a redemocratrização."
No dossiê publicado havia vetos misteriosos e inusitados. Em 20 de dezembro de 1973 foi proibida a divulgação "de toda e qualquer notícia ou comentário sobre o fato de que um cidadão uruguaio estaria na iminência de ser sequestrado, possivelmente em Curitiba". Em 13 de agosto de 1974 recomendava-se "moderação no noticiário a respeito de intoxicação alimentar ocorrida com funcionários da Vasp que tomaram refeições no restaurante da empresa em São Paulo".
"A inexistência de uma estrutura formal de controle sobre a imprensa criava um clima de insegurança e desorientação, pois as ordens da censura podiam partir de qualquer escalão ou área de poder e versavam sobre os temas mais inesperados", afirma a cientista política Celina Rabello Duarte.
Em "A Censura Política na Imprensa Brasileira", Paolo Marconi, um dos historiadores do período, contou mais de 500 comunicados às redações. No início vinham por escrito, mas os verbais se tornaram mais frequentes, por telefone.
Na fase inicial, o episódio de confronto que se tornou célebre foi protagonizado pelo então influente "Correio da Manhã", que contribuiu para a deposição do presidente João Goulart, mas já nos primeiros dias de abril de 1964 criticava o governo militar através de artigos de Carlos Heitor Cony.
O cerco à imprensa começou a fechar-se em 1968, com a promulgação do Ato Institucional número 5. Na sexta-feira, 13 de dezembro, grande parte da tiragem de "O Estado de S.Paulo" foi apreendida, por causa do editorial "Instituições em Frangalhos". No Rio, um major foi encarregado de supervisionar a censura ao "Jornal do Brasil" –habilmente boicotada por uma série de interferências na edição de 14 de dezembro (a seção "Tempo", por exemplo, anunciava nuvens negras; foram inseridas fotos e ilustrações sem conexão com os textos).
"Era importante caracterizar aos olhos dos leitores que estávamos sob o arbítrio", conta o jornalista Alberto Dines, ex-diretor de Redação..
A resistência mais prolongada à ação das tesouras coube aos jornais "O Estado de S.Paulo" e "Jornal da Tarde", ambos submetidos à censura prévia no período de 1972 e 75. O primeiro estampava sonetos de Camões no lugar das reportagens vetadas, enquanto o vespertino optou por publicar receitas culinárias.
"As receitas eram propositalmente inventadas, absurdas", disse Ruy Mesquita, diretor do "Jornal da Tarde", em depoimento ao documentário "Impressões do Brasil".
A contabilidade do arbítrio inclui 10.352 linhas cortadas, 60 reportagens vetadas na íntegra, 44 fotografias e 20 desenhos e charges na revista semanal "Veja", que a partir de 1974 teve 119 edições sob censura prévia.
Anteriormente já haviam sido apreendidas três edições da revista.
Na tentativa de desarticular a incipiente imprensa alternativa, impunha-se a esses veículos o envio dos textos a Brasília. O semanário "Opinião", só ficou sem censura nos oito números iniciais.
Livre da censura prévia após cinco anos, o humorístico "O Pasquim", em 1975, foi recolhido, sob acusação de "atentado à moral e aos bons costumes". E "Movimento", que passou a ser editado naquele ano, teve três edições apreendidas, mesmo depois de liberadas pelos censores.
Houve tentativas bem-sucedidas de diálogo, diz Boris Casoy, que por duas vezes ocupou o cargo de editor-chefe da Folha. "Minha única arma era a tentativa de persuasão", conta Casoy, que passou a dialogar ao telefone com o engenheiro Richard de Bloch, um dos chefes da censura em São Paulo.
"Em casos extremos, quando havia ordens que impossibilitariam até a publicação do jornal, ele escutava meus apelos e argumentos e depois retornava a ligação, às vezes com a frase 'Brasília atendeu às suas ponderações".
O cerco só começou a afrouxar-se para a grande imprensa em 1975, mas, a rigor, prolongou-se até junho de 1978, quando foram abolidas da censura prévia as três últimas publicações ainda submetidas –"O São Paulo", "Movimento" e "Tribuna da Imprensa".

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