São Paulo, domingo, 27 de março de 1994
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URSS ignorava "ofensiva imperialista"

JAIME SPITZCOVSKY
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE MOSCOU

URSS ignorava 'ofensiva imperialista'
A rede de espiões da KGB e da inteligência militar soviética no Brasil não detectou sinais sobre a preparação de uma ação militar em 1964 e a chegada dos generais ao poder surpreendeu o Kremlin. Ao remontar esse quadro, Nicolai Vladimirovich Mostovietz lembra os tempos em que administrava, desde Moscou, as relações entre "partidos-irmãos", o PC da URSS e o PCB, como chefe do Departamento de Américas do aparato partidário.
Naqueles anos de Guerra Fria, o então secretário-geral do PCUS, Nikita Khrushchev, vivia seus últimos meses antes do golpe palaciano que o derrubou em outubro de 1964. No Brasil, os militares sacrificavam a era João Goulart. "Quando a notícia sobre o acontecido no Brasil chegou a Moscou, fui imediatamente convocado por Boris Ponomariov, que dirigia o Departamento Internacional do PCUS", recorda Mostovietz, enquanto toma uns goles de café em seu apartamento na avenida Kutuzovsky, região central da capital russa.
A cobrança para Mostovietz foi direta: "Nos sabíamos algo sobre o golpe?", indagou Ponomariov. "Não. E nem imaginávamos que isso pudesse acontecer", devolveu o responsável pelas relações entre Moscou e o PCB. Depois de receber mais dados sobre a situação no Brasil, Ponomariov cortou a conversa bruscamente e se apressou a informar o Kremlin sobre a "ofensiva imperialista".
A pressa revelava uma disputa pelos corredores do poder em Moscou: o Departamento Internacional do PCUS rivalizava com o Ministério de Relações Exteriores, já que na era soviética, as estruturas do PCUS se confundiam com as do Estado. Homem poderoso na hierarquia partidária, Boris Ponomariov promovia uma guerra sem quartéis, em busca de mais influência, contra o chanceler Andrei Gromiko. "Khrushchev confiava mais no aparato partidário", explica Mostovietz.
Diplomatas e funcionários partidários usavam os mesmos relatórios para analisarem a turbulência do Brasil. "Também recebíamos informações do Comitê de Segurança Estatal", conta Mostovietz, usando o nome completo da KGB (Komitet Gosudarstivinei Bezapasnosti, em russo). Outros fontes eram o serviço de inteligência das Forças Armadas soviéticas, a embaixada em Brasília e o PCB.
"Ponomariov ficou bastante irritado com o fato de não termos sido capazes de antever o golpe, mas eu me defendi dizendo que nem mesmo o embaixador, que estava no Brasil, conseguiu prever", recorda Mostovietz. Segundo ele, Luís Carlos Prestes, então secretário-geral do PCB, nunca mencionou a ameaça de um golpe em suas conversas com os dirigentes soviéticos em Moscou.
Embora mal-informada, a embaixada soviética já sentia cheiro de perigo e instabilidade no começo de 1964. O embaixador Andrei Fomin, na véspera da ação militar, informou Moscou que estava queimando alguns documentos do arquivo, com medo de ataques contra a embaixada. Relembra Mostovietz: "Eu disse ao Fomin que era um absurdo o que ele estava fazendo, pois não tínhamos lá nenhum documento secreto, apenas papéis de trabalho sobre as relacões diplomáticas e comerciais entre os dois países."
Quando o golpe veio, segundo Mostovietz, uma sensação de pânico tomou conta da embaixada soviética e os diplomatas temiam até uma invasão do prédio. "Nossas instruções eram no sentido de manter a calma", conta Mostovietz, hoje com 81 anos e uma saúde que lhe permite continuar a escrever textos sobre a atual crise política russa. Aposentado desde 1984, ele dirigiu o Departamento de Américas do PCUS durante 24 anos, desde 1960, e visitou o Brasil quatro vezes, como integrante de delegações oficiais soviéticas. Em 1961, o roteiro incluiu visitas ao então presidente Jânio Quadros e ao vice, João Goulart.

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