São Paulo, domingo, 27 de março de 1994 |
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Anotações de uma pequena história
RUBEM FONSECA
Em 1962 eu não havia ainda publicado meu primeiro livro, e sequer imaginava que, um dia, escrever seria a minha profissão. Era diretor de uma empresa privada e como tal fui convidado por um grupo de colegas e amigos empresários, dirigentes das principais associações representativas do comércio e da indústria do Rio de Janeiro e de São Paulo, para participar da organização de um instituto inspirado nos princípios contidos na encíclica "Mater et Magistra" e baseado na ata da "Aliança para o Progresso", documento conhecido como Declaração da Punta del Este, elaborado em 1881 pelos países das Américas, entre eles o Brasil. O Ipes (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) tinha como finalidade, "por meio de pesquisa objetiva e livre discussão, chegar a conclusões e recomendações quanto às diretrizes das atividades econômicas, no sentido de contribuir para o fortalecimento da democracia brasileira, de modo a acelerar o desenvolvimento do país, assegurar uma melhor distribuição da renda nacional, elevar o padrão de vida do povo e preservar a unidade nacional mediante a integração das regiões menos desenvolvidas". A conclusão e recomendações do Instituto seriam levadas a todas as camadas do povo brasileiro, a começar pelos empresários, e também ao governo, "a fim de que todos se tornassem conscientes e solidários na obtenção de soluções democráticas para os problemas do país". No ato de fundação do Ipes a Assembléia Geral me escolheu como um dos diretores do Instituto. Toda a direção era composta de empresários que continuavam trabalhando em suas companhias e não recebiam remuneração pela sua colaboração. Havia também um quadro de funcionários distribuídos pelos vários setores do Instituto, que era financiado pela contribuição mensal ostensiva, e legalmente contabilizada, de associados, na grande maioria empresas de todo o país. O início de suas atividades teve uma extensa cobertura da imprensa. Eu atuava na área de estudos e divulgação de projetos. Foram preparados e enviados ao governo e ao parlamento, projetos de reforma agrária, tributária, bancária e administrativa, pelo que recordo, tendo sido dada aos mesmos ampla publicidade. À medida em que crescia a rejeição ao governo João Goulart na classe média, em setores empresariais, eclesiásticos, militares e também na mídia, no Ipes se desenvolveram duas tendências. Uma, fiel aos princípios que haviam inspirado a fundação do Instituto, manteve-se favorável a que as reformas de base por ele defendidas fossem implantadas através de ampla discussão com a sociedade civil, o governo e o parlamento; a outra passou a julgar a derrubada do governo João Goulart como única solução para os problemas políticos, econômicos e sociais que o país enfrentava. O governo Goulart, que se sentia, com motivo, cercado e pressionado, decidiu atacar. Uma CPI, envolvendo o Ipes, foi instaurada por parlamentares governistas para avaliar a influência do poder econômico nas eleições; constantes ameaças de punições fiscais e de outra natureza passaram a ser feitas aos dirigentes e associados do Instituto. A eclosão do movimento militar solucionou, no que me concernia, a controvérsia existente entre as duas tendências dentro do Instituto. Eu afastei-me completamente do Ipes e nunca me aproximei do novo governo, nem daqueles que o sucederam. Não era, como homem de empresa, nem sou agora, como escritor, favorável à ruptura da ordem constitucional em nosso país através de revoluções ou golpes de estado, militares ou civis. O grupo favorável à solução de força, em entrevistas e declarações, procurou destacar sua irrelevante e indireta participação nos acontecimentos políticos de março. Alguns, dessa tendência radical, e outros da corrente democrática, foram nomeados para cargos no governo Castello Branco e deram sua contribuição a mudanças administrativas e políticas que se realizaram, todos acreditando no patriotismo do seu engajamento. Mais tarde, quando já começava a me dedicar ao ofício de escritor, meu livro "Feliz Ano Novo", sob o pretexto de ser "pornográfico e contrário à moral e aos bons costumes", foi proibido, por um dos governos militares, de circular em todo o território nacional. Junto com a proibição, veio a ordem de que todos os exemplares existentes nas livrarias e no depósito da editora fossem apreendidos. Acusaram-me de fazer a "apologia do crime" em minha literatura; influentes políticos e autoridades do governo militar declararam publicamente que, além de ter meu livro proibido, eu devia ser preso por minhas "atividades imorais, subversivas e criminosas." Isso me levou a manter uma longa e dispendiosa ação judicial contra a União. Fui condenado em primeira instância. Só consegui ganhar a causa nos tribunais superiores, depois de 13 desgastantes anos de uma prolongada batalha jurídica, graças ao extraordinário empenho e competência dos meus advogados. (O livro de Afrânio Coutinho, "O erotismo na literatura"; e os de Deonísio da Silva, "O caso Rubem Fonseca" e "Nos bastidores da censura", contam detalhes desse litígio. Este último livro inclui uma relação extensa de escritores e artistas nacionais censurados pelo regime militar). Quando o Ipes encerrou suas atividades, o senhor Clycon de Paiva, que o presidia na ocasião, deu instruções para que toda a documentação existente nos arquivos do Instituto fosse empacotada e entregue, sem expurgos, ao Arquivo Nacional. Texto Anterior: ÁLBUM: OS FATOS QUE MARCARAM A ÉPOCA MILITAR Próximo Texto: Ipes foi criado em 62 para combater Goulart Índice |
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