São Paulo, domingo, 27 de março de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Infidelidade partidária e estabilização

ANTONIO KANDIR

Em meio à turbulência da crise entre os Poderes, passou quase despercebida a decisão do Congresso revisor de rejeitar a emenda da fidelidade partidária, mesmo em versão mais branda que a original. Tivesse sido aprovada, deputados e senadores que trocassem de partido no transcorrer da primeira metade da legislatura perderiam o mandato (a emenda entraria em vigor em 1996).
A decisão demonstra de forma cabal o acintoso desinteresse de grande parte dos parlamentares em fortalecer os partidos e o Poder Legislativo. Preferem manter as coisas como estão: partidos fracos e Congresso desagregado.
Como mostram dois belos artigos no último número da revista Novos Estudos do Cebrap (um de Argelina Cheibub Figueiredo e Fernando Limongi; outro de Carlos Alberto Novaes), o Congresso caracteriza-se hoje por uma curiosa combinação de desagregação extrema e forte centralização.
De um lado, está a massa de parlamentares anônimos que se movem segundo interesses individuais ligados a suas regiões e clientelas; de outro, a Mesa Diretora e o Colégio de Líderes, que efetivamente comandam o processo legislativo, mas, não raro, perdem o controle sobre preferências e votos de seus comandados.
Falta o meio de campo. Faltam partidos que estabeleçam a ligação entre a massa dos parlamentares e as instâncias superiores do Legislativo. Na falta deles, o processo legislativo está sob a permanente ameaça da imprevisibilidade total e de decisões que contrariem o mais elementar bom senso.
A aprovação da emenda da fidelidade, em sua versão original, seria passo importante para melhorar este quadro. A pena de perda do mandato, principalmente se acompanhada de outras medidas que fortalecessem o poder disciplinador dos partidos, faria com que os parlamentares pensassem duas vezes antes de preterir as decisões partidárias em benefício de seus interesses específicos.
Diminuiria assim a necessidade de lançar mão de toda sorte de favores para conseguir o apoio de uma maioria parlamentar. Haveria não só menos fisiologismo, como também maior previsibilidade quanto ao comportamento do Legislativo. Ambos fatores decisivos para o sucesso de qualquer processo de estabilização.
A estabilização é um processo cuja conclusão conta-se em anos e que só prospera se as condições políticas de sua sustentação se repuseram a cada passo. Caso contrário, se os agentes econômicos se convencerem de que haverá descontinuidade logo adiante, tendem a prevalecer comportamentos defensivos que a destroem.
Confiança e previsibilidade são fatores fundamentais para o sucesso deste processo. Para que existam, é muito importante que haja partidos fortes e um Congresso em que a "lógica" prevaleça sobre o imponderável. Tão mais importante quão mais profundas tiverem de ser as mudanças para assegurar o controle das finanças públicas em bases sólidas e permanentes.
No Brasil, demos apenas um primeiro passo nessa direção. Para colocar a inflação a nocaute, entretanto, é necessário haver mudança do regime monetário e fiscal, mudança que não pode acontecer da noite para o dia, pois é antes de mais nada um problema político e não técnico.
Político na medida que afeta em cheio as relações de Poder, põe em xeque interesses solidamente arraigados e redefine as relações de força no conjunto da sociedade. Não é por outra razão que processos de estabilização tendem a exacerbar os conflitos.
Para que a estabilização prossiga e seja levado a bom termo, é decisiva a capacidade de processar os conflitos e dar-lhes ordenação institucional compatível com o objetivo de derrotar a inflação.
Quando esta capacidade é baixa e não se vê perspectiva de que aumente em prazo previsível, ou seja, quando as instituições são frágeis, a estabilização fica à mercê dos humores de uns e dos interesses espúrios de outros.

Texto Anterior: Crédito sobre energia elétrica; ICMS - Exclusões; Apuração decendial; GIA - Preenchimento; Abono pecuniário - Prazo; Venda a prazo - URV
Próximo Texto: Unibanco escolhe casal 2 para campanha
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.