São Paulo, domingo, 27 de março de 1994
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Cornel West busca uma 'ética do amor'

BERNARDO CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Cornel West, 41, é considerado hoje um fenômeno intelectual americano. Em parte, pelo que tenta combater em seu pequeno livro "Questão de Raça" ("Race Matters"), uma coletânea de artigos originalmente publicados em revistas e jornais, do periódico liberal judaico "Tikkun" ao "The New York Times".
West é um intelectual negro que não deixa de questionar alguns dos principais pilares do pensamento negro mais radical nos EUA, como o afrocentrismo. É uma estrela
Sua imagem é facilmente vendável: um intelectual negro, moderado em questões sociais e raciais extremamente delicadas e que tem o aval de algumas das principais instituições legitimadoras do saber nos EUA –as universidades da Ivy League, onde é ostensivamente cultuado.
A fama de West, entretanto, não vem de seus trabalhos mais substanciosos, como "The American Evasion of Philosophy" (1989) e "The Ethical Dimensions of Marxist Thought" (1991), mas de sua imagem pública, das 150 palestras que profere anualmente e de suas declarações e artigos sobre a situação do racismo e dos negros
hoje nos EUA.
Embora considerado um proeminente analista e crítico da sociedade americana por jornais e intelectuais de prestígio, West também tem seus críticos. O cientista político Adolph Reed, de Yale, acusa o filósofo de superficialidade, dizendo que seu trabalho tende a ter "mil milhas de frente e duas polegadas de profundidade".
"Questão de Raça" é um bom exemplo do que o próprio autor, neto de um pastor batista, define como um "pragmatismo profético" e que pode ser traduzido como uma teologia da libertação negra americana. Na verdade, West diz rejeitar os cacoetes do pensamento europeu –e sobretudo francês– transposto para os EUA, em nome de uma tradição autenticamente americana. "O objetivo básico de minha vida: falar a verdade aos poderosos, com amor, para que a qualidade da vida cotidiana das pessoas comuns seja melhorada e a supremacia dos brancos se veja destituída de sua
autoridade e legitimidade", escreve o filósofo logo no prefácio.
Com a inclusão de "uma ética do amor" como antídoto ao niilismo a que foram reduzidas as comunidades negras pelo consumismo e a desigualdade racial nos EUA, West dá um toque evangélico ao elogio que faz do pragmatismo de Charles Sanders Peirce e Emerson, representantes da melhor tradição filosófica americana.
Sua idéia é produzir um pensamento que tenha uma origem social e consequências práticas.
No caso de "Questão de Raça", a preocupação recorrente é com a "ameaça niilista", essa "doença da alma" a que estão sujeitas as comunidades negras, algo que vai além dos problemas econômicos e sociais (que o filósofo de formação marxista também não ignora) e que diz respeito à perda de certos valores e instituições necessárias, segundo West, para a manutenção do amor-próprio entre os negros americanos (amor, família, solicitude etc.).
Com isso, o autor está tentanto substituir o raciocínio de base racial (que lastreia grande parte da militância negra contra a supremacia branca) por um pensamento de
base moral. Para West, o raciocínio de base racial, responsável pelos radicalismos integristas (afrocentrismo etc.), é uma armadilha que continua colocando os brancos
como uma referência, ainda que negativa, para a comunidade negra. O raciocínio de base moral permitiria compreender finalmente "a luta dos negros pela liberdade
como uma questão não de pigmentação da pele (...), mas de princípios éticos e sabedoria política".
West está coberto de boas intenções e seus argumentos, embora em grande parte seguindo apenas o caminho do bom senso, acabam parecendo muito originais numa
sociedade onde a reação das minorias contra as desigualdades vem criando nos últimos anos alguns absurdos e irracionalismos.
Sua visão ponderada de fatos recentes como os conflitos entre negros e judeus em Crown Heights (Nova York), a nomeação de Clarence Thomas para a Suprema Corte e as novas e débeis lideranças negras (Leonard Jeffries etc.) ou mesmo sua admiração com reservas em relação a Malcolm X fazem de West uma raridade. Uma voz sensata, que contrasta com a miopia da compreensão que os americanos (e boa parte da comunidade negra) costumam ter de si mesmos.
Isso não garante, porém, a originalidade e o brilho que vêm sendo atribuídos a esse pensamento.
O raciocínio de base moral que West pretende substituir ao raciocínio de base racial lhe permite, por exemplo, frases deste gênero: "Sempre que dois seres humanos
encontram o genuíno prazer, satisfação e amor, as estrelas sorriem e o universo se enriquece". O que faz com que, em certas passagens, tenha-se saudade dos "cacoetes" do pensamento francês.

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