São Paulo, domingo, 27 de março de 1994
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Memória da manhã

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – Chegou da escola soltando fogo pelas narinas e livros pelo chão. A professora cismara com a cara dela, o ano todo a perseguira, era demais. O pai já estava na porta, verificando se colocara as chaves do carro novo no velho chaveiro. Estranhou a fúria da filha, sempre tão mansa e bem-sucedida nos estudos. Ou a menina ganhava um dez redondo e merecido na prova da tarde ou ficaria em recuperação, e aí, adeus férias!
Evidente que era mais um caso para o Super-Homem. E o Super-Homem, no caso, era ele mesmo. Afinal, vivia disso e não podia deixar a filha humilhada pela dependência na prova de português. Sem prometer nada, vagamente perguntou pelo assunto. "Pôr-do-sol!" –respondeu a filha, chutando os sapatos, como se eles fossem os culpados de tudo. Resignado, guardando as chaves do carro, ele proferiu a sentença: "Deixa comigo!" A garota vestiu o short e foi andar de bicicleta na Lagoa. O problema, agora, era dele.
Sentou-se à máquina. Velha, nobre máquina onde escrevera seus melhores textos, máquina louvada por Drummond, por Carpeaux, até mesmo por Morávia e Semprún. Caprichou no pôr-do-sol, buscou o tom coloquial dos jovens, foi severo nas regências verbais, depois de algumas hesitações substituiu um "levemente" por um "suavemente". Cortou um ponto de exclamação. Foi trabalhar com a consciência lavada pela boa ação e pela boa prosa.
Na manhã seguinte, estava tomando banho quando ouviu o barulho. A filha chorava, a mulher se exaltava, as duas cachorras latiam. Enrolado na toalha, mais parecendo um senador romano do tempo de Cícero do que um carioca no banho, foi averiguar.
A filha veio em prantos: "Pai, deram bomba em você!" E o pai, traduzido em quatro idiomas, elogiado por Morávia e Semprún, nem teve tempo para se indignar e muito menos para se defender: a toalha ia caindo e ele correu ao banheiro onde conseguiu esconder a nudez e a vergonha.

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