São Paulo, segunda-feira, 28 de março de 1994
Texto Anterior | Índice

Março de 64 - uma visão histórica

SÉRGIO XAVIER FEROLLA

O período transcorrido de março de 1964 aos dias de hoje nem é tão curto que nos impeça uma perspectiva histórica sobre uma fase da vida nacional cujos desdobramentos estão à vista de todos, nem é tão longo que nos permita fazê-lo com total isenção, participantes que fomos, a grande maioria dos brasileiros, dos fatos marcantes dessa quadra, e para alguns, infelizmente, relembrando velhas cicatrizes ou até mesmo reabrindo feridas que ainda não cicatrizaram.
A tentativa de compreender o ocorrido, no entanto, se feita sem a preocupação corporativista de defender, sob quaisquer argumentos, o papel do seu grupo, ou até mesmo o seu, pessoal, no embate político que antecedeu e culminou no movimento de 64, bem como na sua continuidade nos 20 anos seguintes, passa pela constatação de não ter sido tal movimento mais uma quartelada sul-americana tão ao gosto da época.
Havia é certo um ativismo fardado sem precedentes vindo da década anterior, mas não se tratava de rivalidade na disputa do poder. Era de fato uma manifestação da classe média urbana, de onde provinha de forma largamente majoritária o estamento militar, contra o que considerava indevida ascensão do proletariado pela via das políticas populistas e sindicalistas de Vargas e de seu suposto continuador, João Goulart.
Se tal efervescência já havia levado o presidente Getúlio Vargas ao suicídio em 54, é fácil imaginar-se o clima criado com a posse de Goulart após a desequilibrada decisão da renúncia de Jânio Quadros. Era o mesmo Goulart que, como ministro do Trabalho de Vargas, conduzindo greves a partir do próprio núcleo central do poder, fôra alvo das declarações insubordinadas do "Manifesto dos Coronéis", no qual parcela notável daquela oficialidade se insurgia não apenas contra a forma como o governo conduzia os rumos do trabalhismo, mas também contra o próprio ministro de sua Força, o general Estillac Leal.
O recrudescimento de tais práticas, agora com Goulart na chefia de um governo presidencialista, após o retumbante fracasso de um parlamentarismo votado às pressas pelo Congresso Nacional para atender às pressões das forças conservadoras e dos militares inquietos, criava um clima nacional de exacerbação, radicalizando posições.
As chamadas Reformas de Base, cujo carro-chefe se compunha da reforma agrária, então entendida como a simples distribuição de terras, da nacionalização dos bancos e outros temas polêmicos, e que seriam feitas conforme o "slogan" compactuado pelo governo, "na lei ou na marra", ocupavam as praças e os rádios. A desordem prenunciava o caos.
No cenário internacional, vivia-se o auge da Guerra Fria. As duas superpotências haviam estado, pouco antes, às vésperas do confronto nuclear por causa da instalação de rampas de mísseis soviéticos em Cuba. E a declarada política de exportação da revolução de cunho castrista para a América Latina punha em sobressalto o Departamento de Estado norte-americano.
A contracultura e a contestação ruidosa da juventude ocidental de todos os valores institucionalizados ("é proibido proibir"), criavam um quadro com nítidos reflexos no Brasil, no qual forças em choque encontravam motivação e justificativas para qualquer tipo de ação radical.
A identificação apressada entre o populismo demagógico de um governante mal preparado e o ativo comunismo internacional, cujo diversificado espectro de atuação no Brasil fazia convergir para os movimentos de massa as formas mais candentes e agressivas de sua atuação, trouxe profunda inquietação às forças conservadoras e à oficialidade.
Seguindo orientação do Departamento de Estado, os bancos norte-americanos passaram a negar, sistematicamente, ao governo brasileiro e às empresas atuando no país todos os empréstimos cuja negociação se encontrava em andamento. Por outro lado, o empresariado nacional e estrangeiro, preocupado com o rumo dos acontecimentos, aumentou suas remessas de moeda forte para o exterior, descartando qualquer plano de expansão de seus negócios.
O quadro de desmantelamento econômico e de radicalização política estava formado. O assunto era debatido à exaustão na Escola Superior de Guerra, da mesma forma que em todos os outros foros onde se reuniam pessoas responsáveis, preocupadas com o destino do país.
O general Castello Branco, tendo cursado a ESG em 1956 e sido seu instrutor em 57 e 58, estava agora na chefia do Estado-Maior do Exército, onde mantinha contato permanente com as avaliações de conjuntura levadas a cabo na instituição, pela seriedade que nelas reconhecia.
A gota d'água para a deflagração do movimento revolucionário foi, no entanto, de natureza precipuamente militar. Do mesmo modo que, seguindo orientação do professor Darcy Ribeiro, então chefe da Casa Civil, o governo, carente de apoio político para as reformas, intentava buscá-lo nos sindicatos operários, procurava também, como estratégia para enfrentar as pressões da oficialidade, o respaldo das agremiações de militares subalternos, através de assembléias de clubes, incentivo à participação em comícios políticos, apoio a ações conjuntas de soldados, marinheiros e operários.
Começaram a se organizar, em vários pontos do país, as conspirações dos que pretendiam por cabo a esse estado de coisas.
Castello Branco, espírito aberto, legalista e democrata, relutou em se engajar numa solução extremada para enfrentar o radicalismo já reinante. Só aceitou a chefia do movimento quando se convenceu ser ele, naquele momento, o único em condições de estabelecer uma convergência entre os rumos dos diferentes grupos de conspirata, não apenas em função da respeitabilidade do seu nome, mas também pelo prestígio do cargo que ocupava.
O movimento vitorioso ascendeu ao poder e, com ele, várias personalidades civis e militares de representativo passado esguiano: o general Golbery, o ministro Paulo Paranaguá e o general Ernesto Geisel são exemplos dessa época.
Muitas foram as realizações do primeiro período de governo pós-revolução, notadamente o controle do processo inflacionário, a criação do Sistema Financeiro da Habitação, a reorganização administrativa do Estado através do decreto-lei 200, entre outras iniciativas modernizadoras e eficazes no plano social.
A chamada continuidade revolucionária, porém, nem sempre apontou para rumos coerentes e, como em toda intervenção político-militar, apareceram exageros e equívocos.
A própria sucessão de Castello, por ele vislumbrada como oportunidade para um retorno imediato do poder civil, foi atropelada pelo grupo do general Costa e Silva, então ministro do Exército e representante dos que não aceitavam a possibilidade do combate à subversão e à corrupção dentro dos quadros de uma legalidade já definida pela Constituição de 1967. Os acontecimentos se precipitaram em 68 e a edição do Ato Institucional nº 5 definiu uma mudança de rumos políticos no processo, configurando a moldura da sequência de governos militares que só vai terminar em 85, por claro esgotamento das condições de sua permanência.
Um período marcado por traumas e realizações, onde muitos representantes da elite civil (alguns, hoje, críticos acerbos do processo), servindo-se ora da ingenuidade ora do despreparo dos militares para o exercício do poder político, conduziram o país por descaminhos econômicos e sociais.
De modo igualmente distorcido, alguns militares e civis, fascinados pela oportunidade de exercitar o mando em níveis e setores jamais cogitados em suas carreiras, ou participando de um loteamento corporativista que incluía um confortável conjunto de benesses, alimentavam uma filosofia de segurança nacional absolutamente contrária ao pensamento democrático da Escola Superior de Guerra, por atentatória à segurança do cidadão.
Focalizar tais aspectos, sem dúvida negativos, faz parte do esforço de objetividade que procura evitar o elogio fácil e a postura ufanista, muitas vezes justificadas por indiscutíveis ganhos para a nação, obtidos naquele rico e controvertido período, embora se possa hoje questionar a validade desses ganhos em termos da dívida externa e da distribuição de renda.
Porém um crescimento econômico a altas taxas por vários anos seguidos (até o impacto dos sucessivos choques do petróleo), a notável expansão quantitativa e qualitativa do sistema nacional de telecomunicações, a ampliação do parque industrial brasileiro com base no esforço indutor do Estado e a solução do problema da demanda reprimida no setor energético, para ficar apenas com alguns exemplos, não podem deixar de ser reconhecidos como parte do saldo positivo.
A crítica mais fácil e mais compreensível se concentra na perda das liberdades democráticas e nos exageros da repressão, mas a radicalização sempre compromete o lado com menor poder. O momento, hoje, é de meditar sobre aqueles 20 anos de governos autoritários, iniciados com um movimento que, em suas raízes, atendeu aos reclamos de uma sociedade desrespeitada e ofendida, para que, as elites estejam onde estiverem, ocupem os cargos que ocuparem, fiquem alertas para o fato de ser intolerável a zombaria acintosa das dificuldades da nação, supondo-a abúlica e desarmada.

Texto Anterior: Qualidade da educação; Maternidade voluntária; Parabéns, parabéns; Caos na saúde; Críticos do plano; Fax Semler; Sociologia e Política; A prática de Thatcher
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.