São Paulo, terça-feira, 29 de março de 1994
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A essência do poder é a mesma

MIGUEL ARRAES

A longa conspiração havia começado na posse do presidente João Goulart, intensificando-se depois do plebiscito que lhe restituiu os poderes perdidos no acordo com os militares. Alguns setores indicavam uma saída pacífica para a crise que antecedeu o golpe. O lançamento prematuro e simultâneo das candidaturas de Juscelino Kubitschek, pelo PSD, e de Carlos Lacerda, pela UDN, parece conter esse aviso.
Mas, naquela ocasião, o golpe já estava em andamento. Um desfecho, entretanto, dependia de pretexto interno, a ser fornecido pelo governo. E também de suporte internacional, que lhe foi dado, de acordo com documentação publicada muito depois e com fatos conhecidos na época, mas não divulgados, como a presença de navios estrangeiros nas costas brasileiras.
O choque principal ocorria em torno da política econômica. Jango, como fizera Getúlio, tentava alargar o mercado interno, elevando o salário mínimo. Propiciava, em consequência, o mercado de artigos populares. As forças do golpe, como os fatos em seguida mostraram, desejavam sobretudo o crescimento da produção de bens de consumo duráveis, que carecem de um mercado de alta renda. Para ultrapassar essa condição eram necessárias medidas que alterassem a política econômica. Noutros termos, o governo tinha de mudar de rumos para não ser mudado.
As ilusões das forças populares eram grandes e levavam a falsas análises da real correlação de forças políticas e militares. Ao contrário, a infiltração dos serviços secretos em certos setores tirava a confiança de quem procurava abrir os olhos para a realidade.
Fomos visitados por um representante de um daqueles setores que sonhavam com caminhos inaceitáveis, o qual expressou seu posicionamento diante do seu acompanhante, conhecido informante dos serviços de informação do Exército. Era difícil distinguir, nesses casos, se tais iniciativas resultavam de incompreensível ingenuidade de quem se dizia revolucionário ou se o interlocutor era um provocador a mando dos golpistas. Em qualquer hipótese, a única solução era repelir, com energia, tal tipo de diálogo.
Esse exemplo serve apenas para ilustrar o clima de instabilidade política decorrente da ausência de estruturas sólidas que conduzissem um movimento popular crescente, mas não consolidado e amadurecido. Ele podia fazer medo aos que resistiam às mudanças favoráveis ao povo, mas não dispunha de tal força para colocar-se no centro do processo político e comandá-lo, como tal medo e aquelas ilusões podiam levar a supor.
A preservação das instituições era importante para o crescimento do movimento popular. A quebra do quadro legal, se porventura era pregada por grupos radicais de esquerda, não interessava aos que procuravam consolidar um processo de mudanças a médio e longo prazos, indispensável à integração da maioria excluída da vida econômica, social e política.
Interessadas no golpe estavam as forças ligadas aos oligopólios, que precisavam assumir, por inteiro, a condução da política econômica. A opinião dada, na época, a alguns importantes jornalistas, entre os quais Araújo Neto, Janio de Freitas e o agora imortal Antonio Callado, no sentido de que a cabeça do signatário cairia qualquer que fosse o desfecho da crise, baseava-se em observação de uma realidade que procurávamos enxergar com objetividade.
Os elementos que conseguimos colher indicavam que, a menos que JK e Lacerda conseguissem seu intento –chegar às eleições–, a intervenção militar viria, como aconteceu.
A disputa pelo estabelecimento de uma política de concentração de renda, iniciada desde os primeiros dias de abril de 64, acirrava-se; as repercussões dessa disputa nos diferentes planos da vida do país –político, sindical, popular– tornavam-se agudas; a situação internacional caracterizava-se pela ocorrência de fenômenos semelhantes em diferentes países do Terceiro Mundo, a começar pelo Vietnã.
Ao golpe no Brasil, sucedem-se o na Indonésia e outros em diferentes partes do mundo. A militarização dos países em crescimento tornou-se forma de enquadramento utilizada pelos Estados Unidos, no contexto da Guerra Fria com a extinta União Soviética.
Essa presença externa alia-se a causas internas em cada lugar, sendo preciso lembrar que estas são predominantes, mas só podem afirmar-se plenamente em conjunção àquelas.
Há de se reconhecer que os reais interessados no golpe souberam utilizar os militares para conseguirem os intentos de concentração de renda, construindo um modelo excludente, mas o único que servia aos grandes grupos econômicos. O país pode ter avançado em muitos setores, como é natural que ocorra. Mas milhares de pequenas e médias indústrias fecharam por todo o território nacional. O núcleo econômico que se considera "moderno", sabidamente atrasado em relação ao resto do mundo, provocou e continua provocando uma crescente marginalização da população.
Na verdade, as mudanças trazidas pela abertura lenta, gradual e segura levaram a uma democracia formal, incapaz de atacar os problemas da população. Mudou o regime, mudou o governo e até derrubou-se um presidente. A natureza do poder, no entanto, continua a mesma instalada em abril de 1964. Nada tocou na essência desse poder que sustenta uma política econômica, com as várias faces que assuma, concentradora e marginalizadora.

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