São Paulo, domingo, 3 de abril de 1994
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O Plano FHC sem FHC

CARLOS GERALDO LANGONI

A candidatura de FHC à Presidência amplia o horizonte temporal do plano de seis meses para quatro anos
A confirmação da saída de Fernando Henrique Cardoso do comando da área econômica para lançar-se na disputa presidencial tem levantado dúvidas sobre a viabilidade do plano de estabilização na sua fase crítica de implementação.
Afinal de contas, Fernando Henrique tem sido muito mais do que um simples ministro da Fazenda: ele tem atuado como eficiente primeiro ministro, arquiteto de inovadoras pontes institucionais que, bem ou mal, têm permitido a travessia de difíceis obstáculos que retardam o processo de modernização da sociedade brasileira.
De fato, conseguir por em prática um coerente programa de estabilização nos últimos meses de um governo sem sustentação política, operando num vácuo de liderança, é realizar uma missão quase impossível.
O plano é sustentado pela maioria da opinião pública, esgotada pela longa convivência com processos crônicos de inflação. Há uma demanda social por estabilidade que se estende a empresários, trabalhadores, estudantes e donas de casa.
A grande virtude do novo programa é internalizar essas aspirações, privilegiando mecanismos voluntários e fugindo das traumáticas fórmulas mágicas envolvendo congelamentos de salários, controles de preços ou sequestros de poupança.
O programa parte do pressuposto realista de que não é possível acabar com a inflação num piscar de olhos: a experiência latino-americana recente ilustra que, mesmo em países com características autoritárias (Chile de Pinochet, Argentina de Menen, o México do PRI e, mais recentemente, o Peru de Fujimori), o sucesso no ajustamento macro exige continuidade de esforços durante um período relativamente longo de tempo.
São necessários um mínimo de quatro anos e, muitas vezes, até uma década inteira para que as reformas econômicas tornem-se de fato irreversíveis e a memória inflacionária seja definitivamente apagada.
É irrealista, portanto, imaginar que, mesmo um plano de estabilização bem desenhado como o atual, pudesse ser viabilizado em cerca de seis, oito meses. Na realidade, o curto horizonte temporal do atual programa é um dos maiores obstáculos para a conquista de credibilidade.
Como convencer que o real é de fato, a moeda forte, ancorada em reservas internacionais, quando é iminente a mudança no comando político do país? Não há dúvida de que parcela substancial da forte aceleração que vem sendo observada da inflação em cruzeiros reais é reflexo desta incerteza: na conversão em URV introduz-se uma gordura desnecessária nos preços apenas como margem de segurança face à imprevisibilidade do processo político.
É sob este ângulo que a candidatura de FHC faz sentido para a própria viabilidade do plano: a expectativa de sua eleição à Presidência amplia o horizonte temporal do plano de seis, oito meses para quatro anos. Abre-se a perspectiva rara de transição política com continuidade administrativa, condição básica para a consolidação de qualquer estratégia de combate à inflação e retomada do desenvolvimento.
Pela sua capacidade de construir alianças, são grandes também as chances de que, caso eleito, Fernando Henrique venha a governar com maioria no Congresso –outro vetor crucial para permitir o avanço das reformas estruturais.
Esse novo horizonte político irá afetar favoravelmente as expectativas em relação ao plano de estabilização, minimizando os danos causados pela frustração com a reforma constitucional. Cria-se, portanto, um círculo virtuoso: a candidatura de FHC dá nova dimensão ao plano, cujo sucesso, por outro lado, reforça as suas chances de vitória.
Para que esta nova dinâmica social funcione a contento é necessário que a implementação das etapas críticas do plano sejam realizadas de forma coerente. A indicação do embaixador Rubens Ricupero para o comando da economia foi uma decisão sábia do presidente Itamar, parecendo confirmar o fim da era dos ministros tecnocráticos. No contexto brasileiro atual, "seniority" e experiência negociadora valem bem mais do que um PHD em economia...
Ricupero fará, certamente, uso de sua vivência prática como observador privilegiado de experiências bem sucedidas de estabilização em diferentes economias, para reiterar o apoio integral ao atual plano. Até porque não existem alternativas práticas para a combinação vencedora de ajuste fiscal, abertura econômica e reforma monetária.
A sua confirmação como ministro da Fazenda oferece a oportunidade para dirimir dúvidas e incertezas que ameaçam o sucesso do programa. É essencial anunciar o mais rápido possível a data de introdução da nova moeda, até mesmo para acelerar o processo voluntário de conversão de cruzeiro real para URV.
Esta fase intermediária oferece a oportunidade para ajustar preços relativos, esclarecer disputas quanto aos critérios de conversão, facilitando a entrada no real com inflação baixa. O prolongamento exagerado deste período preparatório gera, entretanto, incertezas que podem afetar a etapa básica de mudança no padrão monetário.
É também fundamental definir a nova regra cambial. Neste campo, não há margem de manobra. O lógica interna do plano exige adoção de uma paridade fixa com o dólar, mesmo que não seja indefinidamente rígida, apesar de todos os riscos envolvidos. Qualquer indicação de flexibilidade (por exemplo, faixas de flutuação) é incompatível com a estabilidade já anunciada de salários, preços e contratos.
A possibilidade de flutuação será rapidamente interpretada como a inflação esperada na nova moeda, afetando negativamente as expectativas. É também a única forma prática para estabelecer uma associação clara e inequívoca entre a moeda forte –o real– e o dólar, essencial para a estabilidade dos preços.
Finalmente, é crucial definir as regras monetárias na nova moeda, limitando as possibilidades para a emissão descricionária que possa financiar déficits orçamentários não previstos. Os juros reais terão de permanecer elevados para evitar uma explosão prematura do consumo.
Por tudo isso, a credibilidade do plano e do novo ministro seria substancialmente amplificada se concomitantemente com o anúncio da reforma monetária fosse formalizada a independência do Banco Central. Teria de haver delegação explícita de poderes para defender a nova moeda das pressões político-eleitoreiras que tenderão a se avolumar nos próximos meses.
A candidatura de Fernando Henrique Cardoso pode ser interpretada como o componente heterodoxo do plano de estabilização. A supresa é esse vetor ter surgido no campo político e não na área econômica: no contexto brasileiro atual, concorrer à Presidência da República oferece mais possibilidades para ampliar a base de sustentação política dessas idéias reformistas do que permanecer imobilizado no reduzido espaço de manobra de um governo em fim de mandato.
A presença do embaixador Rubens Ricupero e a permanência da equipe econômica sugerem a possibilidade de um gerenciamento eficiente da etapa crítica de reforma monetária.
Surge, portanto, oportunidade ainda inédita na América Latina: avançar no ajustamento e modernização no contexto de uma democracia nascente, ainda que debilitada pelo mal crônico da excessiva fragmentação partidária e pelas imperfeições do processo eleitoral.
O significado da candidatura de Fernando Henrique Cardoso vai, portanto, bem além da pilotagem de um programa de estabilização.
A perspectiva de estabilidade econômica, legitimada pela transição política, é o ingrediente que falta para o reencontro brasileiro com o crescimento rápido e sustentado. A força desse novo estágio de desenvolvimento está concentrada no dinamismo do setor privado: no caso brasileiro, o ajustamento micro (isto é, a nível das empresas) ocorreu antes mesmo do ajuste macro. Com base nesta característica peculiar é que pode-se antecipar a intensidade da recuperação econômica.
Fazer com que a grande maioria da população visualize estes benefícios futuros é o maior desafio do candidato Fernando Henrique Cardoso. Tarefa sem dúvida bem mais complexa e bem mais relevante do que a de ministro da Fazenda.

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