São Paulo, domingo, 3 de abril de 1994
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CHOMSKY

NOAM CHOMSKY
ESPECIAL PARA "HA'ARETZ"

Sobre os acordos de Oslo (1), não estou certo do quanto discordamos. O artigo que enviei a você foi escrito no dia 2 de setembro, logo depois dos acordos terem sido anunciados. De lá para cá o quadro me parece ter ficado ainda mais sombrio. Eu ainda não havia recebido materiais de Israel e da Jordânia referentes a julho e agosto, que jogaram bastante luz sobre o pano de fundo –especialmente com relação ao desmoronamento cada vez mais veloz da OLP (Organização para a Libertação da Palestina) no interior dos territórios, que com certeza foi um fator levado em conta pelo grupo que cerca Yasser Arafat (presidente da OLP), em sua decisão de tentar resgatar o possível para eles antes que fossem chutados para fora.
Eis aqui um ponto de discordância. No seu artigo de 22 de setembro, você termina por dizer o quão melhor teria sido se Israel houvesse tido o bom senso de negociar com a OLP cinco anos antes. Mas cinco anos antes, apesar de existir, entre os ativistas nos territórios, uma substancial oposição a Arafat e seus sequazes, a OLP ainda tinha status e contava com apoio.
Por isso mesmo, Israel se negava a negociar com ela. Em primeiro lugar era preciso esmagar a resistência –exatamente como Yitzhak Rabin (primeiro-ministro de Israel) anunciou em fevereiro de 1989, quando, como você talvez recorde, ele disse a vários líderes do Paz Agora (movimento pacifista israelense) que não se preocupassem com o diálogo EUA-OLP porque ele visava apenas dar tempo aos israelenses para esmagarem os palestinos– "e eles serão esmagados", ele acrescentou, sem despertar qualquer reação.
Em meados de 1993 a OLP já se tornara uma parceira aceitável. Acho que Shimon Peres (ministro das Relações Exteriores de Israel) tinha razão quando disse, logo depois dos acordos, que "houve uma mudança neles, não em nós. Não estamos negociando com a OLP mas com uma sombra apenas do que ela já foi".
Foi só em setembro que vieram a público aqui as notícias sobre as escandalosas e vergonhosas reuniões sigilosamente organizadas aqui pela Academia Americana de Artes e Ciências entre Shlomo Gazit, Joseph Alper e Ze'ev Schiff e seus pares na OLP para determinar medidas de segurança –para os judeus israelenses; a questão da segurança para os palestinos não chegou a ser aventada, segundo indicam relatórios publicados, embora hoje esteja claro que eles continuam sendo sujeitados ao controle militar israelense e aos abusos dos colonos, ao qual deverá agora somar-se o governo por forças da OLP, que podem muito bem vir a revelar-se mais brutais do que os israelenses a serviço de seus dois mestres: Israel e o que sobrou da hierarquia da OLP. O racismo extremo –segurança para os judeus, zero para os palestinos– foi aplaudido aqui e visto como um importante esforço humanitário.
Colocando tudo isto de lado, não discordo do que você diz, na maioria dos pontos. Não se discute a aceitação ou não aceitação dos acordos. É um negócio que já foi fechado. A única dúvida é como reagir ao que vai acontecer. Na minha opinião pouca coisa mudou, no que diz respeito às questões essenciais. As questões relativas aos direitos humanos e nacionais continuam como sempre estiveram, embora eu duvide que a Fatah (facção política dominante na OLP, à qual pertence Arafat) possa continuar tendo credibilidade.
Quanto a Israel, o país está finalmente se aproximando da posição imperialista racional e padronizada. Os britânicos administravam a Índia com mercenários nativos, não com tropas britânicas. Os russos na Europa do Leste fizeram o mesmo, assim como os americanos no Caribe e até mesmo os nazistas na maior parte da Europa ocupada. A mesma coisa acontece no sul do Líbano. Yitzhak Rabin tem toda razão: as forças mercenárias palestinas poderão controlar a população sem se preocuparem com a Suprema Corte (que infelizmente é motivo de chacota), o B'Tselem (grupo israelense de defesa dos direitos humanos), "todos os tipos de corações dilacerados e todos os tipos de pais e mães". É um prazer assistir um homem honesto trabalhando: brutalidade aberta e direta.
Quanto a sua pergunta, "como agimos de agora em diante?", na minha opinião continuamos agindo mais ou menos como antes, exceto que eu imagino que a situação dos direitos humanos nos territórios irá se deteriorar.
O único aspecto de sua carta e seus artigos com que eu discordo diz respeito ao papel norte-americano. Acho que o que aconteceu é diferente. Os acordos de Oslo expressam o tradicional rejeicionismo norte-americano em fantásticos e minuciosos detalhes. Os EUA conquistaram uma vitória enorme, e sabem disso; por isso a euforia aqui, que foi notável. Não é apenas que a OLP tenha capitulado: o mundo capitulou.
A guerra do Golfo possibilitou aos EUA estabelecerem o que esperavam conseguir desde a 2ª Guerra: estender a Doutrina Monroe para o Oriente Médio, permitindo que apenas alguns dos clientes mais abjetos, como a Grã-Bretanha, entrassem para fazer parte do trabalho sujo. Nunca antes isso havia sido inteiramente possível. A Europa havia mantido uma posição independente, expressa na Declaração de Veneza, nas votações na ONU e em alguma diplomacia independente. A existência de uma segunda superpotência criou um certo espaço para o não-alinhamento, conferindo ao Terceiro Mundo um papel pelo menos marginal nos assuntos internacionais.
Em 1991 tudo isso já havia terminado. Os EUA haviam estabelecido o princípio de que iriam governar pela força arbitrária: foi essa a razão e a mensagem da rejeição pura e simples de qualquer opção diplomática possível no Golfo –uma história que ainda é em grande medida suprimida, embora não seja colocada em dúvida, absolutamente. O Terceiro Mundo estava numa situação de desorganização total, não apenas devido ao fim do espaço para o não-alinhamento mas também devido à catástrofe do capitalismo que se abateu sobre as tradicionais colônias ocidentais na década de 80 (e não apenas sobre elas) e os dramáticos sucessos da violência apoiada pelos EUA, que costumam ser gravemente subestimados: 1,5 milhão de pessoas mortas no terror sul-africano apoiado pelos EUA e mais de US$ 60 bilhões em prejuízos só entre 1980 e 1988 ("engajamentos construtivos"), centenas de milhares de pessoas massacradas na América Central, pondo fim –talvez para sempre– às esperanças de democracia e reforma social ali.
Quanto ao mundo árabe, ele não representa nada. Acho que o que eu escrevi no final da guerra do Golfo estava exatamente certo: que os EUA usariam a oportunidade para imporem à força seu tradicional programa rejeicionista, e tentariam elevar a um nível abertamente declarado os acordos tácitos que haviam sido firmados entre seus aliados no Oriente Médio: Israel, Turquia, Arábia Saudita, os emirados e o Egito. Talvez, quem sabe, a Síria também possa ser incluída. Para isso era preciso colocar fim ao problema do nacionalismo palestino e dos refugiados, uma ferida aberta no mundo árabe, que era difícil tratar. Acho que isso já foi mais ou menos feito.
É verdade que os detalhes finais foram acertados sem o conhecimento dos americanos, mas acho que a maior parte dos comentaristas se enganam quanto ao motivo disso, que já havia sido explicado bastante bem na imprensa israelense no início de 1993. A administração Clinton rompeu com o padrão tradicional, que consistira essencialmente em apoiar o rejeicionismo do Partido Trabalhista. Clinton indicou elementos extremistas para administrar sua política em relação ao Oriente Médio, especialmente o chefe, Martin Indyk, oriundo do Aipac, o lobby israelense oficial.
A administração tornou-se mais linha-dura do que o próprio governo Rabin. Peres e Rabin reconheceram que tinham em mãos uma oportunidade para conseguir a concordância dos resquícios da OLP para um acordo de capitulação, e com certeza eles não quiseram perder quaisquer vestígios de credibilidade que pudessem ter junto ao mundo árabe, pedindo a intermediação dos "clintonitas". A Europa havia cedido inteiramente, considerando que sua única tarefa é implementar o rejeicionismo dos EUA; a colonização cultural da Europa pelos EUA, que já atingiu um nível cômico, já foi tão longe que a maioria dos intelectuais europeus provavelmente sequer se lembra das políticas que defendia cinco anos atrás. Assim, foi perfeitamente natural voltar-se para uma potência européia secundária para implementar a posição rejeicionista que os EUA e Israel vinham mantendo há duas décadas, bloqueando qualquer arranjo diplomático possível. E foi mais ou menos isso mesmo que aconteceu.
Os americanos não opuseram objeções, nem as opõem hoje. Eles adoram o que foi feito. Assim que os trâmites foram concluídos, o cenário se deslocou para Washington, sede do poder e do dinheiro. Os "clintonitas" têm o resultado perfeito. Se a tradicional posição americana for implementada, ótimo. Se alguma coisa der errado, eles podem dizer que são meros espectadores.
Também concordo com você que o jogo não terminou. Nunca termina. A idéia de que os russos, ou os Estados árabes, ou os marcianos (a probabilidade é a mesma) possam vir socorrer os palestinos nunca passou de bobagem total e absoluta. Eu me lembro de haver ouvido, para meu grande espanto, a tese de que "os russos virão nos salvar" expressa por alguns intelectuais palestinos quando fiz uma visita em 1988.
A esperança para os palestinos está onde sempre esteve: na mobilização de suas próprias forças e na conquista de apoio entre elementos da população israelense, e principalmente americana. O grande fracasso histórico –único entre movimentos terceiro-mundistas, na minha experiência– da OLP tem sido que seus líderes jamais compreenderam o objetivo e a importância dos movimentos de solidariedade no interior dos EUA. Muitas tentativas foram feitas para convencê-los a enxergarem a luz do dia, sobre esse ponto.
Algumas pessoas de fora que sempre criticaram a OLP, apesar de apoiarem os direitos palestinos, fizeram algumas contribuições nesse sentido. Eu fui uma delas, e vivi algumas experiências pessoais que achei realmente espantosas. O histórico da liderança da OLP em relação a este ponto é terrível. Minha impressão foi que a raiz deste falha consistia numa grave incapacidade de compreender do que se trata a democracia, e o fato de que eles tinham dinheiro demais para seu próprio bem, coisa que sempre constitui influência corruptora.
Muitas perspectivas para o futuro são impossíveis. Existem abundantes recursos de integridade e engajamento nas sociedades palestina e israelense, e há muitas coisas que eles poderiam fazer para resgatar alguma coisa válida destes acordos. Como tudo isto irá evoluir? Colocando de lado os aspectos regionais, talvez mais ou menos da seguinte maneira. Se os dirigentes israelenses conseguirem superar seu racismo, eles compreenderão o quão estúpida tem sido a abordagem feita da questão dos territórios, nos últimos anos. Empresários israelenses (e estrangeiros) racionais tratariam os territórios (fossem eles chamados pelo nome de entidade autônoma ou não, ou mesmo de um "Estado") como os EUA tratam o Caribe: uma região fornecedora de mão-de-obra barata, para onde se pode exportar poluição, etc.
Fazer trabalhadores palestinos irem até Israel foi uma estupidez; eles podem ser tratados com brutalidade muito maior se as linhas de montagem forem transferidas alguns quilômetros para dentro dos territórios, como é feito no Haiti, em El Salvador ou no Norte do México: dessa maneira os corações dilacerados enxergarão menos, como Rabin sabiamente observou. Ademais, isso funcionaria também como arma contra os trabalhadores israelenses, forçando à redução de seus salários e benefícios, mais ou menos como Washington e Thatcher conseguiram fazer e como os industriais europeus estão começando a fazer, com a ajuda, agora, do retorno de boa parte da Europa do Leste a suas origens terceiro-mundistas, desde o fim da Guerra Fria. O efeito deverá ser o de acirrar a polarização da sociedade israelense, e de criar a base para o reconhecimento dos interesses comuns que existem entre pessoas sofredoras de todas as nacionalidades, religiões, origens étnicas e qualquer outra coisa.
Veremos. Esta não é a única parte do mundo cujas perspectivas estão parecendo bastante sombrias e desesperançosas. É muito tentador pensar em largar tudo isso e me voltar ao trabalho profissional, que hoje em dia está sendo realmente interessante. Mas não vou fazê-lo. Rostos sofridos demais, muitas imagens tristes que me assombram. Talvez isto não faça sentido. Mas qual a opção?
1. Em Oslo foi discutido secretamente o acordo entre a OLP e Israel, pelo qual Israel concede autonomia aos territórios árabes ocupados; o acordo foi assinado em Washington, em setembro de 1993.

Tradução de Clara Allain

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