São Paulo, terça-feira, 5 de abril de 1994
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Mira Schendel quebra os limites com linhas

BERNARDO CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Nada pode ser mais discreto que uma exposição de Mira Schendel (1919-1988). Pouca coisa –em arte no Brasil hoje– pode ser mais arrebatadora. A exposição de desenhos da artista, que será inaugurada hoje, às 20h, é um dos melhores exemplos da conjunção desses dois aspectos aparentemente incongruentes.
Schendel chegou a dizer que não havia nada a dizer sobre seus trabalhos, que eles próprios já incluíam tudo o que havia a ser dito –e o não-dito. É uma declaração comum entre artistas. No caso de Schendel, no entanto, há uma extrema acuidade na afirmação.
A própria artista escreveu ao crítico Guy Brett que o que lhe interessava com o desenho de linhas discretas, por vezes quase se apagando, se interrompendo ou desaparecendo do papel pelas bordas, era o vazio, que não é símbolo de coisa alguma.
Qualquer discurso sobre esses desenhos realizados na época da série das monotipias (entre 1964 e 66) se torna barroco, corre o risco de sucumbir a um esforço metafórico (para ter o que dizer) ou ao simples fetichismo.
A radicalidade dessas séries é justamente a atração pelos limites onde aparentemente não há nada, onde não se enxerga mais, onde não se entende. O crítico Rodrigo Naves escreve, no texto do catálogo, sobre a "infinita capacidade de se determinarem novas relações e novos territórios" nessas obras.
Físicos e matemáticos costumam usar a história de um romance de ficção científica do século 19 ("Flatland", 1884, do teólogo inglês Edwin Abbott) como analogia para conseguirem explicar coisas incompreensíveis para a percepção humana: que o mundo teria dez dimensões, por exemplo.
"Flatland" conta a história de um mundo bidimensional, cujos habitantes são figuras geométricas. Para atravessar de um espaço a outro, delimitados por uma linha, esses habitantes não imaginam que exista uma terceira dimensão, que não estão absolutamente presos, mas poderiam saltar sobre a linha que eventualmente os impede de passar de um lado para o outro.
Os cientistas usam o livro como analogia desse limite de compreensão dos homens em relação a outras dimensões. Assim como os habitantes desse mundo bidimensional estão confinados aos limites de sua percepção, também os homens estariam limitados à estreiteza da sua.
A analogia é, na verdade, uma forma de fazer compreender, mais que as características dessas outras dimensões, os limites da percepção humana para compreendê-las.
A atração pelo limite nos desenhos absolutamente bidimensionais de Schendel também funciona como uma tentativa de mostrar que há algo além dele, mas que esse além é invisível, imperceptível aos olhos humanos, o puro e simples vazio.
A única forma de compreendê-lo é por uma representação do limite, no limite dessa representação (linhas que desaparecem, são seccionadas, dobram sobre si mesmas ou se destroem num rabisco).
São trabalhos que falam de uma dimensão desmesurada, grande demais para ser compreendida, que só pode ser entendida pela negação, pelo que não é, pelo limite exposto nesse traço discreto e esvanecente.

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