São Paulo, domingo, 10 de abril de 1994
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As crianças e os monstros da Aclimação

JUNIA NOGUEIRA DE SÁ

O assunto da semana, todo mundo viu, foi a lista do bicho. Por essa razão, um escândalo patrocinado em conjunto pela polícia paulista e a imprensa em geral ficou em segundo plano, e talvez o leitor não tenha se dado conta de quanta arbitrariedade e insensibilidade jornalística ele envolve. Estou falando do caso das crianças que teriam sofrido abuso sexual numa escolinha de São Paulo.
Resumindo: seis adultos foram acusados de promover orgias sexuais diante e com a participação de crianças de quatro anos de idade, mais sessões de fotos e filmes pornográficos. Há ainda a suspeita de que um garoto tenha sido violado. Não há provas de nada, a não ser o depoimento das crianças, colhido de maneira irregular numa delegacia de polícia, e um laudo do Instituto Médico Legal, inconclusivo a respeito da violação.
Desde o momento em que surgiram as denúncias, feitas pelas mães de duas das crianças, a imprensa embarcou na história com um misto de voracidade sensacionalista e moralismo histérico. Abuso sexual anda na moda; contra crianças de classe média, é o chamado prato cheio. Quem acompanhou especialmente os jornais, nos últimos dias, pôde ver que os acusados foram tratados como tarados da pior espécie e a polícia, como a providência divina convocada a puni-los.
O resultado é que a escolinha foi depredada debaixo da conivência policial e, por que não dizer, com algum incentivo sub-reptício da imprensa; dois dos acusados foram parar na cadeia e os outros quatro tiveram sua prisão decretada sem que, repetindo, a polícia apresentasse uma única prova contra eles. A imprensa não se incomodou, nem denunciou esse detalhe. Nomes e fotos dos acusados apareceram em toda a mídia antes mesmo que se pudesse comprovar qualquer ligação sua com o episódio.
Ontem, ao noticiar uma reviravolta no caso, a imprensa já pôde perceber que foi tão precipitada quanto a polícia: os dois presos foram soltos, o pedido de prisão dos outros quatro acusados, relaxado e o delegado do inquérito, trocado. Novas investigações serão conduzidas, e se ainda assim todos forem considerados culpados, a imprensa vai dormir em paz com sua consciência do dever cumprido – mesmo que tenha atirado no que viu e acertado no que não viu.
Ocorre que eles podem ser inocentes, e até agora não receberam o benefício da dúvida por parte da imprensa. Nos jornais, nas revistas, rádios e televisões, os "monstros da Aclimação" (bairro em que fica a escolinha) já foram condenados diante de toda a sociedade e, se saírem limpos dessa história, terão muito trabalho para resgatar uma imagem inapelavelmente arrasada. Durante muito tempo, ainda que com ficha policial zero quilômetro, terão de responder à terrível pergunta: ei, você não é aquele cara do caso da escolinha?
As crianças e suas famílias estão na mesma e desconfortável situação. Talvez o leitor não saiba, mas existem países –e a Inglaterra é o exemplo mais fácil– em que esse tipo de processo, especialmente quando envolve crianças, corre sob sigilo até sua completa apuração. A imprensa recebe, sim, informações completas do caso, mas deve resguardar os personagens até que a Justiça decida sobre sua culpa –ou não. Foi assim, e o leitor deve se lembrar bem, quando no ano passado dois garotos acusados de matar um menino de três anos enfrentaram um julgamento e saíram dele condenados. Durante todo o tempo, foram chamados de Criança A e Criança B pela imprensa. Só depois de condenados no tribunal os meninos tiveram seus nomes publicados.
No Brasil, não há regulamentação sobre isso, e a menos que as famílias sejam influentes sobre a mídia ou recorram a um juiz de bom senso e ele determine o sigilo, casos como o da escolinha de São Paulo viram um salve-se-quem-puder. A imprensa, evidentemente a contragosto, acaba respeitando uma determinação do Estatuto do Menor segundo a qual não se pode identificar crianças em situação constrangedora. Fotos e nomes completos estão proibidos.
Mas a mídia encontra saídas para isso: não se contenta em contar apenas a história (dramática, não há dúvida alguma) sem identificar seus protagonistas, esperando pelo desfecho que aponte os culpados. Não tem respeito pela privacidade, pela individualidade, não pensa nos estragos que pode causar. Publica os nomes completos dos pais, estampa suas fotos feitas dentro de casa (Folha e a "Veja", por exemplo), dá as iniciais das crianças, revela o nome das ruas em que elas moram, encontra um jeito de fazer fotos que considera discretas mas que ainda assim permitem reconhecer seus rostos. Depois de tudo terminado, quando o assunto não tiver mais interesse para a mídia, as crianças e seus pais que se virem para colocar suas vidas de volta no rumo normal. Porque sempre vai aparecer alguém com a mesma pergunta terrível: ei, você não é aquele cara daquele caso da escolinha?
Os mais hipócritas podem assacar contra toda esta argumentação aquela outra de que a imprensa precisa de liberdade para trabalhar. Mas essa verdade, absoluta e inquestionável, não justifica o que aconteceu no caso da escolinha. Preservar as identidades de acusados contra quem não há provas e de crianças que podem ter sido vítimas de abuso sexual seria não uma forma de censura, mas de respeito humano e de respeito à cidadania. Os jornalistas podem até se debater em torno disso, mas duvido que haja leitor que discorde. Na dúvida, basta trocar de lugar com um, qualquer um, dos envolvidos no caso. Quem gostaria de aparecer no jornal dessa maneira?

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