São Paulo, domingo, 10 de abril de 1994
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Originalidade de Pagu supera militância

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Erramos: 18/04/94

A foto publicada é de Maria de Lourdes Castro de Andrade, amante de Oswald de Andrade, e não de Pagu. A foto faz parte do livro "O Salão e a Selva - Uma Biografia Ilustrada de Oswald de Andrade", de Maria Eugênia Boaventura, a ser lançado em breve.
Originalidade de Pagu supera militância
Os primeiros anos do modernismo brasileiro foram pródigos em obras de exceção, inqualificáveis segundo categorias prévias: "Macunaíma", "Cobra Norato", "Serafim Ponte Grande". Não se pode deixar de acrescentar a esta lista o "Parque Industrial - Romance Proletário" de Pagu, publicado em janeiro de 1933 a expensas de Oswald de Andrade.
Este romance de Patrícia Galvão que, por imposição do Partido Comunista no qual militava, assinou-o com o pseudônimo de Mara Lobo, pertence a várias exceções. É modernista e urbano, marxista e feminista. Para a época, é desabusadíssimo na linguagem e aborda questões tabu tanto para o leitor burguês quanto para a militância. Sua autora tinha 22 anos.
Sua vida, seu envolvimento com Oswald e o modernismo tornaram-se conhecidos graças ao trabalho de Augusto de Campos –ao contrário da maioria dos "engajados", Pagu foi realmente "às massas", trabalhando e convivendo com operários a partir de 1931. Ela já havia sido presa durante um comício em homenagem a Sacco e Vanzetti e voltaria a sê-lo em 1935, passando cinco anos nos cárceres da ditadura.
"Parque Industrial", assim, apesar de todo esquematismo e maniqueísmo, idealiza muito menos o "povo" do que a literatura realista-socialista corriqueira.
O romance se apresenta como um painel que retrata fragmentos da vida do proletariado, da pequena e da grande burguesia. Seus personagens são quase todos femininos: as moças da fábrica e do ateliê de costura, militantes do PC, normalistas etc. Os homens –o padrasto bêbado, o operário traidor da classe, os rapazes do Automóvel Club– são sobretudo seus espancadores, delatores e sedutores.
Esquemática, mas bem articulada, a trama, cujo foco é a maneira como as classes se interrelacionam através de indivíduos que transitam de uma para outra por idealismo/oportunismo, consciência/alienação, desenrola-se num tempo indefinido durante o trabalho e o descanso, o Carnaval e a greve, na São Paulo do Brás e dos Jardins, em fábricas, confeitarias, lupanares, cortiços e hotéis.
Os personagens estão em trânsito contínuo. Se há algo de que o romance não pode ser acusado é de falta de ambição –pretende abarcar toda a sociedade paulistana, na horizontalidade da geografia e na verticalidade das classes.
Tampouco se pode acusar a autora de neutralidade, já que sua perspectiva explícita corresponde a de seu partido. Ainda assim, com ressalvas: Pagu parece ter se autodelegado uma lição-de-casa militante, mas como era ótima aluna ultrapassou as expectativas de seus professores, esmiuçando inclusive aspectos que não lhes agradariam.
Em primeiro lugar, o paralelismo entre exploração econômica do proletariado e exploração sexual das mulheres, com ênfase no fato de que a pior situação seria a da mulher proletária. Em seguida, o realismo de linguagem que não se esquiva ao modo grosso como as pessoas falam. Finalmente, a franqueza sexual. Nada disso se adequava ao moralismo pequeno-burguês dos comunistas –e o livro causou escândalo em todos os quadrantes. Mas foi elogiado por ninguém menos que João Ribeiro.
O que "Parque Industrial" tem de pior é o simplismo partidário, cuja visão estereotipada decorre do catecismo comunista. Pagu, no entanto, foi suficientemente fiel à sua experiência pessoal de participante e observadora para desenhar uma cena que prefigura os expurgos stalinistas dos anos seguintes.
Trata-se do trecho em que, confrontada por acusações de que Alfredo, o ex-burguês (inspirado em Oswald), seria trotskista, Otávia, a militante, dispõe-se não só a expulsá-lo do partido, mas a abandoná-lo como amante.
O que o romance tem de mais realizado se evidencia tanto em suas observações sintéticas sobre fatos ou questões concretas quanto no elenco de recursos inovadores que vão da apresentação em painel de personagens intercalados e pedaços de ação à composição esmerada de parágrafos breves e frases concisas. A autora foge constantemente do discursivo, procurando expor seu material de um modo imediato, simultaneísta, que evoca, como já se observou, as técnicas pictóricas do cubismo.
Quando há alguma discursividade, está menos para a literatura do que para o comício. "Parque Industrial" combina um arcabouço comunista tosco e datado com uma carnadura modernista e surpreendentemente moderna, consistindo numa série de poemas pau-brasil emoldurados pelos ditames do realismo socialista. Estes envelheceram a ponto de não serem nem mais caricatos: aqueles continuam inspirados.

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