São Paulo, domingo, 10 de abril de 1994
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As vinte bocas da sensação

Sai o ensaio 'Carta Sobre os Surdos-Mudos', de Diderot

FRANKLIN DE MATOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

A "Carta Sobre os Surdos-Mudos" é hoje considerada uma pequena obra-prima, que interessa não apenas aos leitores de Diderot, mas também àqueles que lidam com poesia e estética. Para os primeiros representa, no dizer de Georges May, um dos pilares do portal que dá acesso à obra do filósofo; para os outros contém uma reflexão sobre a natureza da poesia, sobre aquilo que a distingue e a aproxima das outras formas de arte.
Curiosamente, entretanto, a posteridade acabou negligenciando este livrinho luminoso: publicado pela primeira vez em 1751, ele permaneceu confinado às edições das obras completas ou escolhidas de Diderot, só sendo reeditado separadamente em 1965, graças a Paul Hugo Meyer.
Arriscaram-se várias explicações para esta trajetória editorial. Uma delas sugere que o "esquecimento" se deveria a uma razão muito simples: a "Carta" não teria o encanto subversivo da maioria dos escritos de Diderot. É claro que uma coisa não explica a outra, mas não se pode negar que, ao redigir este livro, o filósofo evitou as ousadas fórmulas da "Carta Sobre os Cegos", que lhe custara a prisão alguns meses antes.
O momento não era oportuno para provocar os adversários, pois precisamente naquele ano deveria aparecer o primeiro volume da "Enciclopédia", que Diderot queria preservar a qualquer custo. Não é de espantar, portanto, que, na "Carta", o espírito polêmico de Diderot tenha se limitado a maltratar, às vezes injustamente, o escritor e acadêmico Charles Batteux, com quem discute alguns tópicos de estética e o problema retórico da inversão.
Uma segunda explicação sustenta que a obra andou meio esquecida devido aos seus defeitos, no caso devido ao hibridismo que apareceria no descompasso entre a forma da carta e o tom do diálogo esboçado. Também aqui uma coisa não explica a outra. Aliás, segundo o próprio Diderot, as duas coisas tampouco se excluem: ao justificar as reiteradas digressões do texto, ao lembrar o caráter maleável do gênero epistolar, Diderot se refere a este como um lugar apropriado para se "conversar livremente".
Por isso G. May pode afirmar que, se para Rousseau a carta é uma "efusão", para Diderot ela é precisamente uma "conversação".
Outra explicação afirma que, embora situada entre a "Carta Sobre os Cegos" e os "Pensamentos Sobre a Interpretação da Natureza", a "Carta Sobre os Surdos" não seria um elo significativo na trajetória que levou Diderot do ceticismo deísta de sua juventude para o materialismo ateu da maturidade e, por isso, interessaria secundariamente os estudiosos do seu pensamento.
Entretanto, conforme Norman Rudich, a questão filosófica central da "Carta" é resolver em termos materialistas o problema da unidade do espírito. Como se sabe, o cartesianismo tratara a questão postulando a existência de duas substâncias, a extensa, que é múltipla e divisível, e a pensante, que é una e indivisível. Em contrapartida, os materialistas contestam este dualismo; afirmam que nossas idéias mais abstratas dependem da sensação, que a matéria pensa, etc.
Não podem, porém, deixar de responder uma pergunta: de que modo, a partir da multiplicidade dos dados da percepção, pode-se explicar a unidade do espírito? A "Carta" pretende resolver o paradoxo ao retomar uma teoria da relação entre o espírito e a língua que, como se verá, desemboca numa concepção bastante original da poesia. Por intermédio da sensação, argumenta Diderot, nossa alma percebe várias idéias simultaneamente e estas idéias são representadas sucessivamente pelo discurso.
Se a sensação pudesse comandar 20 bocas ao mesmo tempo, as múltiplas idéias percebidas de modo instantâneo seriam igualmente expressas ao mesmo tempo. Na falta dessas bocas, o que se fez foi o seguinte: vincularam-se várias idéias a uma só expressão.
Como se vê, portanto, tampouco é convincente aquela última explicação, pois "A Carta Sobre os Surdos" não representa um parênteses na cadeia de textos materialistas que desembocará anos mais tarde no "Sonho de D'Alembert". Na verdade, qualquer que tenha sido a razão pela qual se subestimou a "Carta", deve ter tido a sua importância um detalhe para o qual o leitor fica desde já prevenido: este livro não é dos mais fáceis de se ler.
Segundo se observou, enriquecidas por esta última, as duas primeiras idéias levam a uma quarta, a da unidade do espírito, que é fundamento das anteriores e serve de transição entre o momento epistemológico e o momento estético da "Carta", onde uma última questão será discutida: o que é a poesia, seu parentesco, sua diferença com as outras artes.
Assim, Diderot "esvoaça" sobre uma porção de objetos, como ele próprio diz. Aparentemente a "Carta" renuncia a qualquer princípio de composição e confirma a tradicional imagem de que Diderot seria um filósofo rascunheiro, incapaz de dar uma forma definitiva aos seus pensamentos. Porém, a sabedoria da composição é revelada justamente sua pela aparente falta de unidade pois, segundo Jacques Chouillet, Diderot reproduz, no plano do estilo, o tumulto da alma ocupada por uma porção de idéias que, como se viu, é o tema central do livro.
A primeira diz respeito à relação de proporção inversa entre a energia da linguagem e a quantidade de discurso: menos discurso, mais energia. Se assim é, pode-se supor aina que o discurso mais enérgico e poético seria aquele que se reduzisse a uma palavra, a um gesto o mesmo ao silêncio total e, para mostrá-lo, Diderot recorre a algumas cenas de Shakespeare e Corneille. A última consequência é que a beleza da linguagem depende do seu grau de energia, donde resultam uma poética e uma dramaturgia que o filósofo explicitará alguns anos depois.
Estas páginas ficaram meio esquecidas, mas têm um enorme significado na história do pensamento estético. Como bem notam os estudiosos, elas aperfeiçoaram um ponto de vista bem próprio do século 18, herdado de Shaftesbury e Du Bos, entre outros: segundo este ponto de vista, a poesia foi definitivamente subtraída do domínio da retórica e passou a ser pensada de uma perspectiva estética.
Além disso, a "Carta" ensinou uma outra coisa ao conservador Batteux: o parentesco entre as artes não deve ser postulado dedutivamente, a partir de uma prévia definição do Belo, mas de modo indutivo, começando por um inventário dos hieróglifos que distinguem cada uma das artes. Por este lado, o livro de Diderot antecipou o célebre "Laocoonte", quer Lessing o tenha lido ou não.

A OBRA
Carta aos Surdos-Mudos, de Denis Diderot. Tradução, apresentação e notas de Magnólia Costa Santos. Citações do grego e do latim traduzidas por João Ângelo Oliva Neto. Nova Alexandria (r. Urano, 215, São Paulo, tel. 270-8627, CEP 01529-010). 95 págs. 13,50 URVs

DENIS DIDEROT
O filósofo (1731-1784) foi o principal organizador da "Enciclopédia". Estudou na Universidade de Paris de 1729 a 1732. Conheceu Rousseau em 1741 e, através dele, conheceu mais tarde Condillac. Em 1743, casou-se secretamente com Antoinette Champion. Diderot começou a trabalhar na "Enciclopédia" em 1745, com Jean Le Rond D'Alembert como co-editor, e completou-a em 1772. No fim de sua vida, Diderot gozou da amizade e ajuda financeira de Catarina da Rússia, e em 1773 morou em São Petersburgo por cinco meses.

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