São Paulo, domingo, 10 de abril de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O despertar da ciência no Brasil

ANTONIO CANDIDO

Este livro foi publicado em meados do decênio de 1950, depois de cuidadosamente planejado e dirigido por Fernando de Azevedo sob o patrocínio da Instituição Larragoiti. A mesma entidade patrocinou também outra obra de grande importância, "A Literatura no Brasil", a cargo de Afrânio Coutinho. Ambas correspondem a um momento significativo da nossa cultura: o do amadurecimento das ciências e do estudo das letras no Brasil.
Cerca de 20 anos antes tinha-se consolidado o princípio segundo o qual as ciências, no ensino superior, devem ser concebidas não apenas ao modo de auxiliares da formação profissional, mas de disciplinas cultivadas antes de mais nada como objeto autônomo de conhecimento.
Isso implicava a idéia fundamental que o ensino deve estar associado intimamente à pesquisa e que o saber deve ser inicialmente "desinteressado", como se dizia, visando antes de mais nada ao seu próprio desenvolvimento, por meio da investigação permanente. Esta idéia, um dos motivos diretores da vida combativa de Fernando de Azevedo, está na base do presente livro.
Ninguém melhor do que ele para organizá-lo. Pensador e homem de ação, tinha sido figura relevante em todo o movimento de renovação cultural, desde as reformas da instrução pública elementar até à concepção e fundação das universidades, sendo que a de São Paulo se constituiu a partir de um projeto básico elaborado por ele, que foi também autor do projeto de estatutos, em colaboração com seu grande amigo Antonio de Almeida Júnior.
Além disso, já tinha demonstrado domínio da matéria no livro "Cultura Brasileira", de 1942, onde traçou uma síntese do nosso desenvolvimento científico. Nesta obra notável devemos buscar o perfil do método que presidiu à concepção e ordenação de "As Ciências no Brasil": levantamento histórico das origens remotas, aparecimento do trabalho sistemático, sua consolidação e, afinal, a situação do momento.
O leitor começa por conhecer a contribuição dos cronistas e viajantes do período colonial, em muitos casos observadores sagazes da natureza e dos costumes, entremeados por uma exceção rutilante: a contribuição realmente científica dos sábios europeus chamados por Maurício de Nassau. Vem depois a grande geração da Independência, que teve cientistas e intelectuais tão eminentes quanto José Bonifácio e Alexandre Rodrigues Ferreira.
Em seguida deu-se a lenta, heróica e quase sempre insatisfatória implantação do ensino e da pesquisa científica, com papel predominante de especialistas estrangeiros e pouca contribuição original dos brasileiros, salvo exceções notáveis, como a de Joaquim Gomes de Sousa na matemática.
Na entrada do século 20 a necessidade de resolver problemas agudos no campo da saúde, da produção e da técnica favoreceu os primeiros grandes feitos de criatividade. Nas ciências biológicas, por exemplo, foi o caso do trabalho de instituições isoladas, como Manguinhos com Oswaldo Cruz e Carlos Chagas; e mesmo de laboratórios particulares, como os dos irmãos Osório de Almeida, Álvaro e Miguel.
Era o amadurecimento, cujo passo decisivo foi a criação no decênio de 1930 das universidades organicamente concebidas, dotadas de centros de pesquisa iniciados frequentemente, nos casos mais importantes, por especialistas estrangeiros. A partir daí a investigação sistemática devidamente equipada e fundamentada, praticada por brasileiros, torna-se regra, não exceção, mostrando que as ciências tinham chegado entre nós à idade adulta. Foi então necessário dar um balanço, que vem a ser este livro.
Ele foi portanto a síntese orientada pelo homem certo na hora certa, isto é, o momento da grande virada de que saiu a cultura científica do Brasil atual. Por isso, quase 40 anos depois ainda possui atualidade e força inspiradora. E para entender bem a sua natureza, assim como o seu papel, é preciso ter em mente as palavras do organizador no final da "Introdução", quando diz que àquela altura estávamos no começo de uma "revolução intelectual" no Brasil, de modo que esta obra, longe de ser um panorama conclusivo, era "a primeira 'tomada de consciência' de uma das mais importantes transformações por que passa a cultura do país, na época atual".
Fui aluno e, em seguida, durante 16 anos, colaborador de Fernando de Azevedo na Universidade de São Paulo. Durante trinta e tantos anos, até sua morte, fomos amigos fraternais, apesar da diferença de idade. Lembro bem do seu esforço no preparo e realização deste livro, e nunca esquecerei a intensidade com que acreditava nas idéias sobre as quais o baseou, e estão expostas na citada "Introdução".
Fruto típico da geração nascida por perto da proclamação da República, Fernando de Azevedo tinha a religião do saber e procurava fecundar de maneira construtiva e atual a tradição "ilustrada", visando a superar o passado sem renegá-lo, concentrando o melhor da sua força na transformação do presente como preparo do futuro. Quando falo em geração da República, penso em homens que apostaram na possibilidade de mudar para melhor a vida em sociedade, certos de que as utopias dão acesso ao real. O fervor de Fernando de Azevedo pelas ciências faz parte deste propósito e está presente na organização de "As Ciências no Brasil".
Isto poderia parecer contraditório em face da gênese de seu equipamento mental. De fato, foi educado pelos jesuítas, que enquadraram a sua personalidade impulsiva e imperiosa numa disciplina exigente, adotada por ele para sempre como componente da sua norma de trabalho. Com os jesuítas aprofundou-se no estudo das línguas e literaturas antigas, preconizadas em seu tempo como panacéia por muitos, embora conhecidas por tão poucos.
Aprofundou-se na história, na filosofia e adquiriu certo modo oratório de falar e escrever. No entanto, num paradoxo aparente, desde cedo deu importância maior ao saber científico na formação da mentalidade moderna, além de se interessar, a partir dos anos de 1910, por atividades tão pouco estimadas pelos homens cultos da época quanto a ginástica e os esportes, que recomendou como força educativa.
No campo do pensamento, dedicou-se bem cedo à sociologia, segundo uma orientaçào que se chamava "positiva" (não positivista) e suscitava grandes reservas das tendências conservadoras. Graças a ela ganhou uma visão renovada do processo educacional e, a despeito da herança autoritária de seus mestres, tendeu às atitudes rebeldes, acolhendo as inovações e lutando pela pedagogia da persuasão, do aprendizado tolerante e do trabalho de equipe.
Nesta linha, propôs em 1934 que os estudantes tivessem representação nas Congregações e no Conselho Universitário, o que foi rejeitado com sentimento de escândalo. E isto é apenas um pequeno exemplo da sua vocação modernizadora, bem expressa numa frase de suas memórias, com referência precisamente às lutas que cercaram a fundação da Universidade de São Paulo: "(...) não estávamos ali, no Conselho, para consagrar velhos hábitos e rotinas. Mas, para proceder à reformulação de problemas e situações".
Coisas como estas esclarecem porque, apesar de ter feito nome inicialmente com estudos sobre a Antiguidade Clássica, sempre lutou pelo predomínio das matérias científicas nos currículos escolares, combatendo a tendência que lhe parecia arcaica de hipertrofiar as humanidades tradicionais. O seu alvo era um humanismo moderno, nutrido pela capacidade de construir a reflexão e a visão do mundo sobre os resultados da ciência. Diga-se de passagem que, além da familiaridade de especialista com as chamadas ciências humanas, tinha boa informação a respeito das outras e foi sempre leitor atento dos trabalhos de divulgação científica. Portanto, ninguém mais qualificado para a tarefa de organizar este livro.
Mas é preciso ainda lembrar a sua posição a respeito da função social da ciência, baseada num ponto de vista democrático que elaborou a partir da sociologia durkheimiana. Ao contrário de muitos dos seus contemporâneos, via, para além da formação intelectual seletiva, a necessidade de alargar cada vez mais as oportunidades, de maneira a reduzir o corte aristocrático tradicional.
No horizonte da sua mente estava a idéia de uma república realmente igualitária, para a qual a instrução deveria preparar membros conscientes no seu conjunto, não guias seletos de massa tutelada (como acaba sendo a teoria do liberalismo esclarecido). Por isso afirmou sempre convicções socialistas e de fato foi um socialista aberto, embora não partidário, sensível ao que na vida política do país se chamava então "progressista".
Para ele o saber deveria ser cultivado de maneira desinteressada, mas para funcionar adequadamente na sociedade. De fato, os seus resultados finais são sempre sociais, na medida em que transformam a vida e o homem, cabendo a uma política bem concebida encaminhar o processo no sentido da igualdade crescente. Lembro essas coisas para sugerir como para Fernando de Azevedo o conhecimento era ao mesmo tempo puro e aplicado, porque deveria redundar na realização dos ideais democráticos.
Tratava-se de promover a elevação constante da instrução e da cultura, com espírito modernizador, rejeição dos arcaísmos e confiança no futuro. Em países atrasados como o Brasil, marcado pelas desarmonias do desenvolvimento e consequente abismo entre as classes, a luta pelo saber moderno podia ser difícil e perigosa; mas isso, em vez de deter, estimulava o ânimo de quem escreveu nas citadas memórias: "Eu sentia, desde menino, uma atração irresistível pela luta e o perigo".
Por isso Fernando de Azevedo foi um intelectual de combate, disposto a abrir caminho para as suas idéias. Poucos foram no seu tempo tão atacados, poucos defenderam campanhas tão virulentas das forças conservadoras e em geral dos interessados em manter a rotina. Mas, passado o tempo, é fácil ver que poucos se tornaram tão credores quanto ela do reconhecimento de seu país.

Texto Anterior: Música também se faz com idéias
Próximo Texto: Problemas da mente brasileira
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.