São Paulo, domingo, 10 de abril de 1994
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A crise do HC

JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI

O Hospital das Clínicas da USP, que ainda é o melhor da América Latina e cuja tradição e seriedade são indiscutíveis, passa por grave crise.
Apesar de ter os mais renomados e respeitados professores de medicina do Brasil, equipamentos modernos, um orçamento de 1 milhão de dólares/dia e uma Fundação que, desde 1988, tem autorização do governo estadual para faturar e receber pelo Inamps, realiza apenas uma média de 60 cirurgias e 3.000 consultas de rotina por dia, com mais de mil médicos e 800 leitos. Sem contar com centenas de residentes e estagiários, o que lhe possibilitaria multiplicar esse atendimento e melhorar ainda mais a qualidade do ensino e da pesquisa.
Muitos serviços têm leitos e equipamentos semi-ociosos, e o pronto-socorro está continuamente superlotado. A crise, agravada ultimamente, tem levado o corpo docente, o assistencial e o administrativo –que ganham salários irrisórios– a uma situação de desânimo e perplexidade.
Tudo isso poderia ser simplistamente explicado pela falta de dinheiro e a culpa colocada no governo federal que, de fato, não tem priorizado a saúde, reduzindo drasticamente, entre 1987 e 1993, o orçamento de custeio da área. Mas a verdade é que no próprio HC estão quase todas as causas da crise e as condições para resolvê-la, usando-se criatividade, experiência e um gerenciamento moderno e descentralizado.
Hoje, nós, professores, lamentamos cirurgias suspensas, leitos ociosos, pacientes internados por semanas só para fazer exames, alunos que carecem de ensinamentos práticos, trabalhadores de saúde mal remunerados, médicos que não cumprem horário. Mas pouco podemos fazer para corrigir estas e muitas outras questões porque tudo está centralizado.
A situação é cômoda para todos. Os professores titulares não podem resolver os problemas porque não têm o comando e recursos à disposição, e os diretores da instituição também não porque o hospital ficou um gigante ingovernável.
A chave da solução está em dar condições de comando e orçamentária aos chefes de serviço –que são os professores-titulares– e responsabilizá-los pelo funcionamento integral (assistência, ensino e pesquisa) e eficiente de suas áreas. Caberá às direções da Faculdade de Medicina, do HC e da Fundação normatizar, controlar, avaliar e oferecer a infra-estrutura, mas o gerenciamento e os recursos devem ser absolutamente descentralizados.
Outra questão fundamental é o oferecimento de salários minimamente dignos a médicos e docentes, o que pode ser rapidamente conseguido pagando-se a todos um acréscimo por produtividade –através da Fundação, com os recursos provenientes do Inamps– que pode chegar até a triplicar o salário.
Essa medida melhoraria sensivelmente a quantidade e qualidade do atendimento à população, mantendo também os médicos mais tempo na instituição. Como consequência, o faturamento da Fundação aumentaria, permitindo, logo a seguir, uma melhoria dos salários dos demais trabalhadores de saúde, que deveria ser decidida setorialmente, baseada no mérito, produtividade, qualidade do trabalho e, principalmente, nas necessidades da instituição, para o melhor e mais completo cumprimento dos seus objetivos.
Não é aconselhável, neste momento, o atendimento de doentes privados no hospital. Isso inevitavelmente acaba por priorizá-los, porque eles pagam honorários médicos –em detrimento dos que não podem pagar. Todas as experiências de atendimento privado em hospitais públicos criaram essa distorção –que é também um deslize ético, porque acaba-se usando o próprio público para vender serviços privados.
Não quer dizer que esses doentes não possam ser atendidos. Eles o serão, porém sem qualquer privilégio em relação aos demais. O que devemos, isto sim, é cobrar das seguradoras de saúde os atos médicos realizados no HC para seus segurados.
Com essas duas ordens de medidas desenvolvidas concomitantemente (descentralização e pagamento por produtividade), passaríamos a ter maior presença dos médicos, possibilitando o funcionamento do hospital no período da tarde, que é imperativo (não se pode admitir, face a tantas e tão graves necessidades da população, que esse importante hospital funcione apenas pela metade).
Teremos também mais apoio e credibilidade dos usuários, levando os governos a darem prioridade à saúde, em relação a outros gastos de menor impacto social. Melhorarão ainda mais, como consequência natural, o ensino e a pesquisa, pois existe em excesso na casa o que é essencial para isso: bons professores. Não se pode esquecer também o efeito multiplicador sobre o sistema de saúde: tudo o que é feito no HC é seguido por outros hospitais.
Pela sua enorme potencialidade e tradição, a crise no HC é muito bem representativa nos ideogramas com os quais ela é escrita em chinês: o do risco e o da oportunidade.

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