São Paulo, segunda-feira, 11 de abril de 1994
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Reichenbach fala dos que viveram 64

CÁSSIO STARLING CARLOS
DA REDAÇÃO

Depois de dois anos gastos na produção, "Alma Corsária", o 11.º longa-metragem de Carlos Reichenbach estréia nesta sexta-feira em São Paulo e no Rio.
Desafiando as dificuldades de filmar num país que praticamente aboliu o cinema, Reichenbach confirma ter a ousadia dos grandes aventureiros.
Às vésperas da estréia de "Alma Corsária", Reichenbach concedeu esta entrevista à Folha.
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Folha - Como foi a gênese do projeto de "Alma Corsária"?
Carlos Reichenbach - O primeiro tratamento do roteiro foi feito no início da década de 80. Nesse primeiro momento, ele tratava basicamente de sintonia poética, que é uma coisa pela qual sou apaixonado, pois minha formação é eminentemente literária.
Quando escrevi o filme, estava fascinado por uma sintonia entre dois poetas que viveram em épocas diferentes, em países diferentes, que foram Cesario Verde e Augusto dos Anjos.
A partir daí, eu construí essa história, que é a de dois amigos, desde os sonhos da década de 50 até a desilusão dos anos 70.
Folha - O que o levou a não realizá-lo na época?
Reichenbach - Eu achei inviável filmar aquele roteiro em 83, uma época que privilegiava os projetos megalomaníacos. Então, abandonei o projeto e só fui retomá-lo em 91.
Quando abriu o concurso da Prefeitura na gestão do PT –o prêmio de incentivo ao cinema– eu peguei aquele projeto que estava abandonado e num final de semana me debrucei sobre ele e vi que era o filme que deveria fazer, porque era possível filmá-lo com o dinheiro do prêmio.
Em duas semanas refiz o roteiro e, aproveitando a idéia original do vínculo entre dois poetas díspares, resolvi aprofundar uma idéia que me interessa muito, que é a de detectar a poesia do trivial.
Folha – "Alma Corsária" é um filme confessional?
Reichenbach - Sim. O filme conta a história da minha geração, aquela de 64, que viveu muita coisa em muito pouco tempo, que teve o privilégio de viver um período historicamente rico.
Tivemos a fase da política estudantil, do desbunde, da contracultura, a fase junkie, a fase mística etc. E isso tudo está no filme.
Além disso, até os 21 anos de idade, eu fui um músico profissional. Isso no filme é bem um dado autobiográfico. O conjunto que toca em Iguape na juventude dos personagens tem o mesmo nome daquele em que eu tocava.
Folha - Que critérios você utilizou na escolha do elenco?
Reichenbach - Desde que retomei o projeto, eu quis escolher atores compatíveis com os personagens. Se o ator não estiver compatível, você já começa de cara a perder a luta.
Folha - Como você chegou ao Bertrand Duarte, que interpreta o Torres, um dos poetas?
Reichenbach - Em 81, o personagem tinha sido escrito para o Ewerton de Castro. Quando retomei o projeto, já conhecia o Bertrand do média-metragem de Edgar Navarro, "O Superoutro". Apesar de parecer arriscado trazer um ator da Bahia para fazer um paulistano da gema, sua atuação em "O Superoutro" me convencia que valia a pena o risco. E valeu
Folha - Andréa Richa também é uma escolha bastante feliz.
Reichenbach - Ela é um dos casos mais impressionantes que eu já vi de cinegenia. Fiquei tão entusiasmado com sua atuação que quero que ela faça meu próximo filme de qualquer jeito. Ela tem uma tal intimidade com a câmera que é muito difícil de encontrar.
Folha - A cada filme seu, vem ficando evidente seu talento para dirigir atores. É um trabalho consciente?
Reichenbach - De "Filme Demência" para cá, uma das coisas que eu descobri foi o prazer de dirigir atores. Eu não ligava muito para isso antes, eu achava que a câmera resolvia todos os problemas.
Folha - Em "Alma Corsária" além do roteiro e da direção, você fez a fotografia e a música. Por que acumular tantas funções?
Reichenbach - Nesse filme, por contingências, eu preferi economizar. Assim, pude fazer algo que sempre quis e nunca pude, que foi usar em várias locações somente a luz natural. Todas as cenas no apartamento no Glicério utilizam quase somente a luz natural.
O fato de também fazer a música me interessava há muito. A importância da música faz desse filme meio que um irmão gêmeo de "Lílian M" e de "Império do Desejo", onde a música é um personagem tão importante quanto a imagem e o diálogo.
Folha - A dança também tem uma função definida na narrativa, como religar o presente ao passado.
Reichenbach - Desde "Lílian M" venho usando a dança para a conclusão de sequências e eu gosto de fazer com que os personagens interpretem como se estivessem dançando. É a coisa que mais me seduz agora. Se eu fosse fazer um filme daqui a um mês, certamente seria um musical.
Folha - O símbolo do anarquismo está bastante presente no filme. Qual o sentido dele para você?
Reichenbach - Eu sempre fui fascinado pelos pensadores anarco-libertários. E sempre tive um fascínio muito grande pelos poetas malditos e pelos visionários.
No fundo, as homenagens feitas no filme concentram-se em duas figuras: o cineasta-poeta Jean Vigo (cineasta francês diretor de "Atalante") e seu pai, o pensador anarquista Miguel de Almereyda.
Há também uma homenagem indireta a Paulo Emílio Salles Gomes, que foi quem descobriu Jean Vigo e, sobretudo, descobriu o Miguel de Almereyda.
Folha - Qual sua expectativa em relação ao público?
Reichenbach - Acho que um filme deve constituir seu próprio público. Apesar de termos perdido aquele que era o do cinema brasileiro, agora temos uma nova chance de recuperá-lo. E sobretudo temos a chance de trazer para o cinema esse público que está redescobrindo a música brasileira. A gente deve decididamente aproveitar esse barco e não decepcionar quem nos espera.

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