São Paulo, segunda-feira, 11 de abril de 1994
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Uma certa idéia de monopólio

ROGÉRIO CÉZAR DE CERQUEIRA LEITE

"Senta-te diante dos fatos como uma criança, esteja preparado para abandonar qualquer idéia preconcebida", aconselhava T. H. Huxley. Confrontado, um dia, com as evidências apresentadas pessoalmente por Marsh sobre a evolução do cavalo americano em detrimento das evidências oferecidas pela linhagem européia, Huxley capitula no ato. "Com a generosidade da verdadeira grandeza", comenta O. Marsh, "abandonou (Huxley) suas próprias opiniões frente à nova evidência e adotou minhas opiniões."
De fato, somente os grandes homens agem eles mesmos de acordo com os conselhos que dão aos outros.
"Tempo é dinheiro", dizem os americanos. "Tempo é sobrevivência", já dizia o austrolopitecus, há 10 milhões de anos. Comportamentos instintivos, atos reflexos, ritualizações servem pois, frequentemente, para economizar tempo. O homem civilizado, entretanto, desenvolveu um estratagema adicional com a mesma finalidade. Este dispositivo é o que os sociólogos chamam de "sistema de valores".
"O valor é um princípio abstrato relativo ao comportamento com o qual membros de um grupo se sentem emocionalmente comprometidos. O valor fornece um padrão para o julgamento de atos e propósitos específicos", dizem os sociólogos. Sem a adoção de valores teria o homem que, a cada passo, a cada decisão, se entregar a prolongadas meditações. Começar do "cogito" de Descartes.
Valores são compromissos inegociáveis, assumidos entre membros de um grupo, e com frequência foram internalizados durante o próprio processo de socialização. O indivíduo que não adere fortemente aos valores de um grupo é expelido. Um sistema de valores é um conjunto em que cada valor reforça os demais formando um todo coerente.
Uma vez estabilizado, o sistema de valores não é facilmente alterado pela supressão de um deles. É necessário uma reorganização de todo o sistema. Eis porque é tão angustiosa e irracional qualquer discussão sobre o monopólio do petróleo.
O movimento denominado "O petróleo é nosso" significou para todo brasileiro patriota um grito de afirmação nacional. Ninguém estava interessado naquele líquido preto, viscoso e malcheiroso, mas na independência política que a negativa em entregá-lo a "interesses alienígenas" veio a representar. O "petróleo é nosso" reviveu o brado "Independência ou morte", só que agora ecoado por milhões de bocas e pulmões na afirmação da nacionalidade.
A expressão concreta desse valor social que era integrado à consolidação de nossa identidade nacional foi o "monopólio estatal do petróleo". Faz, portanto, parte integrante do sistema de valores de muitos brasileiros "uma certa idéia do monopólio do petróleo".
Não será possível suprimir esse valor sem remendar nossa noção de soberania nacional. E este princípio, ao ser recomposto, abalará as idéias mais amplas de patriotismo, de dignidade, de lealdade. Para muitos, suprimir o monopólio do petróleo é, pois, tão perturbador quanto desfazermo-nos de outros valores tradicionais, como democracia, família, verdade, por exemplo.
Por outro lado, não podemos nos esquecer que um sistema de valores tem um valor de sobrevivência, no sentido biológico, para uma sociedade. Ou seja, ele permite ao grupo ou à sociedade que o adota uma "vantagem competitiva". Mas esta vantagem é circunstancial, casuística. Se o meio ambiente em que está inserido o grupo ou outras condições internas ao grupo, mudam, então o que constituía vantagem pode deixar de sê-lo. Assim, o sistema de valores do "pitecantropus erectus" será por certo diferente daquele da sociedade cristã do século 20.
Se o meio ambiente muda, o sistema de valores tem que ser alterado para manter-se capaz de fornecer as necessárias vantagens do grupo. Se os contornos políticos de uma sociedade, os meios tecnológicos e os valores econômicos mudam, devem também evoluir os seus vetores culturais. Pelo menos, em princípio. É, por exemplo, evidente que o conceito de minério estratégico, que assessora o dogma do monopólio do petróleo, se torna crescentemente obsoleto como consequência da explosão tecnológica.
Até há poucas décadas cada aplicação exigia, frequentemente, um material específico. A tecnologia de novos materiais permitiu uma diversificação inimaginável há, digamos, três décadas. O número de ligas metálicas das mais diversificadas, de polímeros crescentemente diferenciados, cerâmicas, compósitos, etc. permite dizer que praticamente não há material para o qual não se encontre sucedâneo.
O petróleo, todavia, é um caso peculiar. Até hoje só foram encontrados, de fato, dois sucedâneos para a produção de eletricidade, que são o urânio e o carvão mineral e, para o setor de transportes, o álcool. O gás natural é um substituto para praticamente todas as aplicações do petróleo. Entretanto, a duração de suas reservas face à presente demanda não é muito maior que aquela do petróleo. É, pois, um eventual substituto, mas não um sucedâneo, enquanto as reservas de carvão são imensas e a biomassa renovável.
Estas e outras fontes eventuais de energia poderão suceder ao petróleo na medida em que a evolução tecnológica reduzir seus custos de produção e que o esgotamento progressivo do petróleo o tornar mais caro. Portanto, novamente é uma questão de tecnologia e de custos.
Não obstante, também é verdade que transitoriamente é possível atribuir um valor estratégico residual às reservas de petróleo, embora pareça mais natural reduzi-lo a parâmetros puramente econômicos.
Basta lembrar que a Alemanha não tem petróleo, ficou isolada durante período significativo da Segunda Grande Guerra e soube produzir todo combustível líquido de que precisou. E a evolução tecnológica no setor específico, de lá para cá, foi apreciável.
Se levarmos em consideração o conselho e o exemplo de Thomas Huxley, temos que nos sentar diante do problema que se resume em três pontos essenciais.
1) A existência de uma reserva de petróleo já descoberta e parcialmente medida pela companhia estatal brasileira. Essa reserva, se confirmada integralmente (10 bilhões de barris), seria suficiente para suprir as necessidades brasileiras (crescimento da demanda de 3% ao ano), por aproximadamente 15 anos.
A Petrobrás acredita que disporá de US$ 10 bilhões para alcançar a produção de 1,5 milhão de barris diários. Com a sua atual margem de lucro, este valor seria atingível em seis ou oito anos. Esta margem depende, entretanto, da manutenção do preço do petróleo importado em torno de US$ 14 o barril nos próximos cinco anos, o que é duvidoso.
2) Não há, em princípio, um monopólio, mas uma reserva de mercado para o capital estatal. A desastrosa aventura do governo do Estado de São Paulo serviu para demonstrar, entretanto, que de fato foi gerado um monopólio para uma única empresa ou bloco empresarial, pois o conhecimento acumulado pela Petrobrás sobre a geologia brasileira é suficiente para derrotar qualquer competidor.
Embora sejam muitos os males de que sofrem os monopólios estatais, talvez ainda mais perversos sejam os cartéis de empresas privadas. Basta ver o que está acontecendo neste momento com os cartéis do cimento, da indústria farmacêutica, e de certos setores da siderurgia.
3) Por mais que os liberais queiram tapar o sol com a peneira, há uma diferença essencial entre o capital nacional e o estrangeiro. A este último é permitido remessas de lucros e ao nacional não. Mais ainda, a razão de ser da filial de uma multinacional é pagar dividendos para seus acionistas. Só os sabujos não percebem esta diferença entre a empresa nacional e a estrangeira.
Aliás, nunca é demais repetir que, contrariamente ao que continua se afirmando descaradamente no Brasil, o capital registrado das empresas ditas multinacionais foi constituído com a poupança brasileira, fosse por intermédio de reinvestimentos, fosse por força de empréstimos. Portanto, se esta é a vantagem, o ganho das divisas com o rompimento do "monopólio" do petróleo, então o objetivo seria frustrado.
Bem estes são os pontos essenciais da discussão. Abandonando este nosso peculiar nacionalismo estatizante, podemos renová-lo, purificado agora com a convicção de que o capital nacional privado é tão saudável quanto o estatal, principalmente se, preservada integralmente, a competente Petrobrás continuar controlando uma parcela apreciável das reservas e da produção.
As vantagens seriam óbvias. Por tímida que fosse, uma saudável competição seria imposta pela presença de outras empresas. E a cartelização seria evitada pelas próprias dimensões da Petrobrás. E antes de tudo, o prazo para alcançar a autonomia seria, talvez, reduzido significativamente.
E quais seriam as perdas? Nenhuma, mesmo para o nacionalismo mais radical. O petróleo não deixa de ser nosso porque a bomba que o extrai, a coluna que o fraciona em derivados e o caminhão que os distribui não são estatais. Se há capitais nacionais dispostos a tal aventura, pouco patriótico seria impedi-los de contribuir para o aumento da produção nacional. E não podemos nos esquecer de que se o petróleo internacional voltar a seus patamares tradicionais, em torno de US$ 20 o barril, a Petrobrás ficará novamente sem margem que lhe permita investir, e sua produção poderá voltar a cair.
Não podemos esquecer ainda que sem novas descobertas as reservas e a produção caem a um percentual entre 5% e 10% ao ano. E quem vai assumir a culpa daqui a cinco ou dez anos? Pois dois serão os efeitos do aumento inexorável do preço do petróleo: os custos do barril e a redução da produção nacional com o consequente aumento do volume importado.
O Brasil não pode colocar seu futuro econômico na crença de que o preço do petróleo continuará no atual patamar. Seria um erro estratégico e, este sim, uma ameaça à soberania nacional.
Quanto à entrada do capital externo no setor, para que os interesses nacionais sejam preservados seria necessário, em primeiro lugar, que a eventual remessa de lucros tivesse uma estrita correlação com o capital realmente internalizado para o projeto. Além do mais, o governo deveria regular a produção de maneira que a disponibilidade de combustível, a médio e longo prazos, fosse determinante.
Seria também conveniente que o capital externo só viesse a ser permitido em uma segunda etapa, caso o esforço conjunto da Petrobrás e do capital privado nacional não levasse o Brasil a um nível de autonomia desejável depois de um certo número de anos.
Nacionalistas ficarão chocados, talvez, com o que acima está escrito. Mas estas são as conclusões a que chegamos quando fazemos um esforço puramente racional e procuramos nos despir de todo e qualquer acessório emocional.

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