São Paulo, sexta-feira, 15 de abril de 1994
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Perigo da unanimidade ronda o país

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Já faz bastante tempo que no Brasil só três coisas acontecem: escandâlos, planos econômicos e eleições. Quando não é uma coisa, é outra. Estamos no meio das três ao mesmo tempo.
É impressionante a quantidade de esperanças que se mobiliza diante de fatos assim. Candidatos prometem novos tempos, planos determinam o fim da inflação, e os escândalos apontam para uma moralização geral do país.
A sucessão de planos, candidaturas e escândalos poderia bem levar a conclusões opostas; à idéia de que nada muda, que as grandes "viradas" e redenções históricas simplesmente não acontecem.
Critica-se muito o Brasil por ser um país "sem memória". Esquecemo-nos dos fracassos econômicos, dos escândalos e das eleições anteriores, o que é ruim. Mas há também uma contrapartida positiva nessa atitude: significa que as esperanças, afinal, não se gastam depois de tantos tropeços cívicos.
Claro que em toda esperança há uma dose de credulidade; mas há também um espírito de resistência notável. Quando tudo parece perdido, e o cidadão se sente inclinado a dizer que este país não tem jeito mesmo, surge sempre uma novidade, uma denúncia ou um projeto, capaz de mobilizar a opinião pública.
Tenho a impressão que, no fundo, esses movimentos de indignação e de esperança têm um papel diverso daquele que lhes é atribuído. Os sociólogos americanos (Robert Merton, em particular) distinguiam as "funções latentes" das "funções manifestas" de determinada instituição. Função manifesta da luta contra a corrupção, por exemplo, é a de diminuir os abusos do poder público. Função manifesta de um plano econômico seria acabar com a inflação.
Uso os conceitos de forma um tanto grosseira. Mas o importante é notar que esses escândalos e planos têm uma função oculta, alheia a seus objetivos e significados imediatos.
Trata-se de constituir a chamada unanimidade na opinião pública. Fazem com que todos (menos os acusados e os vilões) se sintam iguais, brasileiros, patriotas. Tornam-se fator de solidariedade social.
Você fica em condição de trocar idéias e de concordar com sua empregada doméstica, com o zelador do prédio, com o chofer de táxi. O abismo entre as classes e os interesses se preenche numa mesma indignação, numa mesma vontade de que tudo melhore.
Antes, só o futebol fazia isso. Copas do Mundo. Temos, agora, os escândalos.
Numa sociedade tão diferenciada como a brasileira, a execração geral dos João Alves e da corrupção do jogo do bicho funciona como um vínculo imaginário entre as pessoas. Cria-se uma espécie de identidade nacional: há "nós" (grupo que engloba Antônio Ermírio e o chofer de táxi) contra "eles", os pilantras.
Nessa espécie de promotoria amadora e patriótica, é como se Gil Gomes e Hélio Bicudo se confundissem.
O problema de todas as cruzadas –contra a inflação, contra a corrupção é que são profundamente despolitizadoras.
À medida que realça, acima das diferenças de classe e de partidos, um "patriotismo" indignado, tendem a obscurecer as diferenças reais que atravessam a população.
Individualizam-se os malfeitores, os corruptos do Congresso, mas ao mesmo tempo se esquece a questão dos partidos a que pertencem, do Estado em que se inserem.
O problema é mais complicado, pois não há simplesmente divergências ideológicas em jogo. Seria fácil dizer que a maioria dos corruptos e dos escandalosos está alinhada à direita, compondo-se dos "filhotes da ditadura", ao passo que a esquerda se mantém na total limpeza. Isso não é muito verdade.
Torna-se visível a presença de um empresariado "moralista", e frequentes acusações contra a corrupção se ligam à defesa neoliberal de uma diminuição do Estado. O sistema de corrupção criado no Brasil funciona como um partido dotado de interesses próprios, como uma Máfia. O desmantelamento desse estado de coisas exige, ou melhor, não é incompatível com uma aliança entre forças ideológicas diversas.
Mas isso também leva a uma forte dose de enganação. Passo ao assunto dos planos econômicos e das candidaturas. Nos dois casos, tudo parece estar sendo feito pelo "bem" do país.
Creio que só há política digna desse nome quando se sabe, não o "bem" que resultará de determinada ação, e sim o "mal" que explicitamente será feito aos adversários.
Esta opinião tem raízes algo suspeitas; inspira-se no livro do fascista Carl Schmitt, "O Conceito do Político" (ed. Vozes, 1992). Schmitt diz que o essencial, na política, é a distinção entre o "amigo" e o "inimigo" –assim, como, na Estética, trata-se de distinguir entre o "belo" e o "feio", ou na teoria do conhecimento, entre o "falso" e o "verdadeiro".
A distinção é capciosa, mas até certo ponto funciona na prática. Embora muitas vezes, quando fazemos política, estamos apenas interessados entre a "amizade" e a "inimizade", essa distinção não tem o mesmo estatuto filosófico daquela que divide o belo do feio, ou a verdade da falsidade.
Pois "amigo" e "inimigo" são termos relativos, dependem de quem toma a palavra. "Falso e verdadeiro", "feio e bonito", por mais discutíveis que sejam os critérios envolvidos no julgamento, apontam para um absoluto. Talvez a dupla de conceitos mais adequada para se pensar "o político" seja a oposição entre convencimento e violência. Sendo a violência aquilo que, na Estética, corresponde ao "feio" e, na teoria do conhecimento, aquilo que correponde ao "falso".
Muito bem. Mas há, na disputa política, algo que não se resume à distinção entre violência e convencimento. Pois existe um convencimento falso, mistificador, ideológico, e outro, racional, fundamentado.
Nos planos econômicos, nas candidaturas salvadoras, nos slogans, no esforço cívico contra a corrupção, há muito de mistificador. Não se politiza a questão de "quem tem de perder", por exemplo, no mais recente esforço antiinflacionário. Demagogicamente, acusaram-se os "oligopólios". Quanto aos bancos, ninguém falou muito.
Se o sistema de corrupção tem hoje uma evidente face política, envolvendo autoridades e instituições, fisiologismos regionais e máfias urbanas, caberia identificar com mais clareza, para usar os termos de Carl Schmitt, o "inimigo".
Acho, por exemplo, que Antônio Carlos Magalhães e a Rede Globo não estão acima de qualquer suspeita. Um dos maiores escândalos do país, aliás, é que oligarquias políticas detenham a posse da retransmissão dos programas da Globo. Manipulação e violência ideológica existem, e vão muito bem, obrigado. Seria um escândalo a investigar.
Mas estamos no universo das candidaturas salvadoras, dos planos antiinflacionários, dos moralismos despolitizados. O efeito é bom, em termos de identidade patriótica. É ruim, pelos riscos de emburrecimento que traz consigo.

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