São Paulo, sábado, 16 de abril de 1994
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A lei é fator criminógeno

RENÉ ARIEL DOTTI

O jogo do bicho tem duas faces distintas que compõem um tipo de moeda circulante no mercado da esperança. A primeira sugere casa e comida para uma legião de trabalhadores e suas famílias. A segunda tem o cunho da violência e da corrupção quando a lista das apostas se transforma na relação de crimes e suspeitos.
Existem vasos comunicantes entre a exploração ilegal da loteria e os negócios do crime organizado que desafiam o Estado, neurotizam a sociedade e atormentam o cidadão. A maior responsável pela contradição das faces do jogo do bicho é a própria lei que atua como fator criminógeno.
Ela é a fonte alimentadora do conflito entre o bem e o mal desse jogo feito com os números dos animais que passeiam no sonho ou na fantasia do apostador. A "triste criação nacional", na definição de um antigo ministro do Supremo Tribunal Federal, está completando meio século de exploração bem-sucedida se considerarmos a data da promulgação da lei das contravenções penais (1941) como marco de declaração de ilicitude.
É possível acabar com o jogo do bicho com uma só "penada". Ou, na expressão dos criminalistas: basta "despenalizar", isto é, excluir esse fato rotineiro do quadro dos ilícitos e das penas criminais. Revogada a proibição haverá benefícios da atividade que, enquanto loteria, não é moralmente reprovada.
As tendências de legalização do jogo do bicho se renovam de tempos em tempos. Durante o governo Figueiredo, o ministro da Previdência Social, Jarbas Passarinho, defendeu a iniciativa em nome da utilidade pública e assim ocorreu, há pouco tempo, com a proposta do então secretário de Segurança e Justiça Nilo Batista ao governador Leonel Brizola. Há projetos tramitando no Congresso Nacional em tal sentido.
O exorcismo atual contra Castor de Andrade lembra a história da "Bola de Sebo", de Guy de Maupassant. Ela foi a prostituta que repartiu a comida com um pequeno grupo de fugitivos da dominação prussiana e entregou-se, com repugnância, a um dos comandantes para obter a liberação da carruagem. Atendidos, os companheiros de viagem voltaram a marginalizar "Bola de Sebo". A "filosofia" de que os fins justificam os meios foi posta no lixo e a "mulher de vida fácil" foi desprezada.
Entre nós o preconceito recrudesceu a partir do momento em que a "bola de sebo" se transformou em "bola de neve". Que desce a montanha do juízo temerário para excitar os agentes da lei, improvisar os julgamentos e preencher as listas de cassação moral.

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