São Paulo, quarta-feira, 20 de abril de 1994
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Seleção previsível entra em campo hoje

ALBERTO HELENA JR.
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O Brasil entra em campo hoje com a alma vestida de crepe. Não só porque lamenta a perda de uma esperança –Dener, um menino de 23 anos, que, com seu futebol feito de ousadia e irreverência, em cada jogo, era sempre uma surpresa latente–, mas porque vai-se sedimentando no seu âmago a certeza da previsibilidade.
É bem verdade que, para hoje, Parreira decidiu fazer uma alteração substancial no roteiro: montou seu time com um volante apenas –o indefectível Dunga, na ausência de Mauro Silva. E completou seu meio-campo com mais três meias –Raí, Zinho e Rivaldo. Muller e Edmundo ficam mais à frente. A bem da verdade, são cinco atacantes. Logo, seremos mais ofensivos, não?
Creio que sim, não fosse o pequeno detalhe de que tanto Zinho quanto Raí e Rivaldo vêm, neste exato momento, atravessando uma fase muito ruim de suas respectivas carreiras. E, em futebol, não se pode dissociar o esquema dos jogadores e este de seus momentos de altas e baixas.Sei bem que estamos entrando na reta final da preparação para a Copa e que Parreira tem de fazer lá suas observações. Entre as quais, saber se Raí dá conta do recado e se Rivaldo pode ser seu substituto. E, se há um jogo, entre os programados, em que o Brasil pode se expor mais, o jogo é este, contra um combinado de dois times franceses não muito dispostos a grandes sacrifícios.
Por isso mesmo, melhor seria queimar as etapas. Ou Raí, na Copa, estará nas pontas dos cascos (e isso não pode ser avaliado agora), ou chegou o momento certo de Parreira tentar um novo esquema, capaz de eliminar a dependência atroz do time da figura de seu capitão.
Um esquema que seria facilmente absorvido pelos jogadores e para os quais o treinador teria jogadores de sobra. Refiro-me ao aproveitamento de laterais como Leonardo e Cafu nas meias, onde eles atuam com desembaraço, tendo ainda aqui no Brasil, de reserva, Mazinho et caterva.
Sobretudo porque, se Rivaldo e Raí não atravessam boa fase, estes outros estão tinindo.
O futebol, como a vida, é um jogo de oportunidades. Perdê-las pode significar a morte.
Os boêmios costumam dizer que a madrugada é amante tão insaciável que traga seus
adoradores, mais cedo ou mais tarde. Dener morreu de madrugada, mas não por boêmia. Por fatalidade. Mas o destino parece não dar bola a essas sutilezas. Quando o cara nasce, ele faz uma leve e imperceptível marca na alma do escolhido. Depois, fica ali, na arquibancada, vendo a história rolar, como no jogo da bola, à espera do apito final.
Meses atrás, ousei aqui comparar o destino de Dener ao de Enéas. Ambos negros, tipicamente paulistanos, recolhidos na várzea pela Lusa, onde se projetaram para o mundo. Ambos talentos raros, daquela fina e quase extinta estirpe de craques capazes de pegar uma bola na sua intermediária e sair cortando o time inteiro adversário, até chegar ao gol inimigo. Velozes no corte dos espaços, rápidos no domínio do tempo. Prestidigitadores, tiravam da aba da chuteira sempre um drible imprevisível, uma jogada desconcertante, um gol de placa. Malandros, desguiavam-se da luta pela bola por longos períodos, para reaparecer ali adiante, num átimo, para jogar areia nos olhos dos inimigos e encantar o torcedor com um lance fulgurante. Filhos da noite, eram dois iluminados.
Ambos morreram de madrugada, entre ferros retorcidos, na viagem inacabada de suas curtas vidas.
Maldita profecia.

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